TRÓPICO DE CAPRICÓRNIO

Os solavancos finalmente cessaram.E a chefe de cabine, uma balzaquiana descaída devido a tanta despressurização mas com uma postura muito profissional, materializou-se junto deles como que por encanto.

- Pronto.Agora as coisas vão acalmar.A trepidação diminuiu.Já passámos a Serra Leoa.

Elvira que se encontrava de cócoras, descalça, com os pés sobre o assento informou:

-Tive tanto medo.Tenho que me ir trocar.Fiz chichi nas calças!

João levantou-se para lhe dar passagem sem saber o que responder e fez sinal ao comissário de bordo.

-Agora sim, apetecia-me.Pode trazer-me uma aguardente?

Que cena! Era a terceira vez que vinha até às terras abaixo do Capricórnio dar a mesma acção de formação de Auditoria a pessoal da companhia de aviação da antiga colónia.

Ele o junior da equipa com Elvira sua senior.Elvira não era má pessoa.Tinha quarenta seis anos, era casada com um homem muito mais velho e tinha um ar de freira que convidava toda a gente a confessar os seus segredos mais íntimos como se de uma tia querida e acima de qualquer suspeita se tratasse.Ela delirava desempenhar esse papel e coleccionava um arsenal de informações valiosíssimas que iam desde adultérios em curso a valores alarmantes do PSA.Depois tinha aquele corte de cabelo à tijela entre o frade e o missionário, usava calças quando viajava e era uma réplica da actriz Linda Hunt quando fizera “O ano de todos os perigos”.Em suma, um respeitável camafeu.

João estava nos seus trinta e muitos, a mulher acabara de o deixar, tinham concordado num divórcio por mútuo consentimento e lutava para ser reclassificado profissionalmente – o que aliás era mais que justo – mas não tinha nenhuma cunha de peso que facilitasse essa pretensão.

Felizmente que à chegada não havia tanta formalidade como à partida e pelo menos não lhes subtraíram os passaportes como era costume fazerem no aeroporto em Luanda com o pretexto de averiguar uma suposta ligação ao tráfico de diamantes.

Lá chegaram à velha cidade destruída e pestilenta que no entanto revelava ter sido talvez um dos lugares mais bonitos para se viver noutros tempos, antes da independência.O Oceano castanho teria sido azul, as casas em estilo colonial parcialmente destruídas outrora grandiosas e belas…enfim.

Já conheciam a rotina que os esperava.Acordar com as galinhas.Pequeno almoço com creme de papaia no hotel de segunda, transporte acidentado até ao centro de formação numa carrinha que quase atropelava a multidão e seis horas de trabalho seguidas para que a Companhia não tivesse que pagar o almoço aos formandos.

Após o regresso, o almoço e a sesta, o dia estendia-se interminável.Elvira muito púdica e beata metera na cabeça conhecer todas as igrejas da cidade e como cavalheiro João concordou em acompanhá-la e paparem todas as missas que apanhassem no caminho.

Felizmente naquele dia, desculpou-se porque tinha que entregar uma encomenda da Mãe a uma antiga colega e amiga.

E foi assim que a decifrar um mapa foi ter a uma rua não muito longe do hotel em que estavam hospedados e deu com uma casa de dois pisos onde morava há anos uma amiga de infância da sua Progenitora.

- Você deve ser o João.

- Sou.

- É muito parecido com a sua Mãe…Eu sou Valentina.Entre.

Era uma mulher de meia idade com uns olhos surpreendentemente calmos, uma pele branca imaculada, vestida de acordo com o clima e com quem ele sentiu logo uma empatia fortíssima e inexplicável.

-A minha Mãe fala muito de si.E manda-lhe isto.

E entregou-lhe um presente que ele mais tarde nem se lembrava exactamente do que se tratava.

- Gostava de o convidar para vir jantar a minha casa amanhã.Aceita?

João pensou num relâmpago que seria uma deixa ideal para se ver livre da sua adorável “freira” ao menos por uma noite e acedeu de imediato, encantado e voltou para o hotel a pensar porque teria Valentina decidido vir viver para aquele fim de mundo.

As noites custavam a passar.Elvira recolhia-se cedo para ligar para a família em Portugal.

Ele deambulava pelo bar e pelo jardim junto à piscina , não se atrevendo a sair do hotel por causa dos assaltos.

Havia por lá duas hóspedes muito entradas da África do Sul que organizavam convívios na Suite que ambas partilhavam no último andar e uma noite convidaram-no por intermédio do garçon de serviço.

- Mas que espécie de convívios?

- Festas temáticas que acabam em sexo em grupo.Eu também costumo participar, às vezes.

- Que interessante!Mas então a que devo a honra do convite?

- O senhor parece um homem muito só.E as senhoras acharam que correspondia ao perfil físico requerido e hoje querem deitar-se as duas connosco, consigo e comigo e com dois rapazes negros que já são habitués.Sem preconceitos.Tudo ao molho e fé em Deus.

-Estou a ver .Assim um “vale tudo”? Obrigado, a sério. Sinto-me muito lisonjeado mas estou…sem…combustível nem fôlego para uma corrida desse nível.Peço-lhe que lhes diga que não me levem a mal.

-Eu é que peço que não se sinta ofendido por ter sido tão directo.Mas aqui é o fim do mundo e depressa compreendemos que não há tempo a perder.Temos que viver a cem à hora.

No dia seguinte,o trabalho decorreu normalmente e ele lá foi ao jantar que tinha combinado na véspera.

Valentina conduziu-o a uma marquise por trás da casa que deitava para um jardim luxuriante mas simultâneamente muito calmo.Nem as folhas das plantas se mexiam na atmosfera de calor,Serviu-lhe os aperitivos e a conversa fluiu naturalmente e fácil como já se conhecessem há muito.

Ao contrário de Elvira, sua colega, não dizia mal das pessoas nem das coisas e limitava-se a descrevê-las com objectividade e tolerância.Vivia com o irmão que se encontrava ausente no norte do país e foram viver para Moçambique após a Revolução.Ela era professora primária e quisera contribuir para um programa de alfabetização a desenvolver num dos países mais desfavorecidos do Terceiro Mundo.

Sem uma pergunta embaraçosa ou indiscreta ouviu-o sem opiniões frívolas nem conselhos irritantes e durante as duas horas que o jantar, o café e o serão duraram ele sentiu-se invadir por uma paz e serenidade preciosas e tão desejadas há meses.

Retribuiu o convite e recebeu-a no foyer do Hotel mas desta vez com Elvira também a acompanhá-los.Eram duas senhoras educadas e a refeição decorreu alegre e bem disposta.Quando João foi levá-la a casa já tinha a certeza de querer que Valentina se tornasse sua amiga apesar da considerável diferença de idades.

Voltaram a ver-se e a estar durante o resto da estadia e ele prometeu e cumpriu que haveria cartas e sempre que estivesse mais abonado chamadas de longa distância quando se separassem.

A formação correu bem e chegou o momento de regressarem a casa a talvez seguramente mais de 12 000 km de distância.Nessa manhã, Elvira muito nervosa tinha-se pegado com a arrumadeira do quarto porque tinha deixado a água do chuveiro a correr durante vinte minutos para ver se ficava mais quente e a mulher perguntara-lha se ela tinha um homem no duche o que a escandalizara e exasperara em extremo.

No Aeroporto ainda tinha sido pior para discretamente conseguir passar umas peças de artesanato em malaquite,pinturas em batik e elefantes miniatura em pau santo e sobretudo quando tiveram que se deixar revistar.No cubículo Elvira desatou aos socos e pontapés ao oficial que julgou que ela era um homem e a apalpou de cima abaixo.João prevenido socorreu-a, distribuindo uns dólares que tinham sobrado pelos inspectores e lá conseguiram embarcar.

Contou à Mãe do seu encontro com Valentina e disse-lhe que gostaria de não perder o contacto com ela.Não conseguiu explicar bem porquê.Ela não era propriamente a fada que se encontra numa fase especial da vida nem a amiga imaginária que se torna de súbito real.Mas era definitivamente o que de melhor ele aprendera a apreciar e a venerar no ser humano.A experiência, a sabedoria, a sensatez e …o subtil encanto das pessoas que não querem nem esperam nada dos outros.

José Manuel Serradas
Enviado por José Manuel Serradas em 26/06/2019
Código do texto: T6682257
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