Conto das terças-feiras – Felicidade passageira
Gilberto Carvalho Pereira, Fortaleza, CE, 25 de junho de 2019
A seca inclemente castigava toda a região do Alto Sertão do Salgado, extremo sul do Ceará, já bem perto do Estado da Paraíba. Na cidadezinha, se é que assim podemos chamar aquele amontoado de casas construídas de forma desordenada e sem planejamento, o sol batia mais forte, pois poucas eram as árvores que teimavam em permanecer fornecendo sombra para alguns corpos, quase esqueléticos, que as procuravam para, debaixo de sua escassa copa, usufruir o pouco vento que ainda soprava do leste rumo ao oeste.
Nessa cidadezinha, onde os acontecimentos, sejam de qualquer natureza, raramente se fazem presentes, vivia a família de seu Manoel de Oliveira e dona Luíza de Souza Oliveira, também conhecida como Luizinha ou Lulu. Casal pacato, com mais de dez anos de união matrimonial, sem terem a felicidade da companhia de um filho sequer. Corria solto que dona Luizinha era estéril, não podia ter filhos. Mas essa felicidade estava prestes a dar o ar de sua graça. Depois de nove meses de gestação, a patroa, proclamava seu Manoel, estava prestes a parir.
O comerciante Manoel de Oliveira atendia a um de seus fregueses quando uma figura magra, descalça, nu da cintura para cima entrou no estabelecimento de seu Oliveira, gritando:
— Seu Mané, acode que dona Luizinha está sentindo as dores. Ela pediu pro senhor ir até a casa da dona Dodô prá avisá que tá na hora. Só não sei que hora é essa, acrescentou o garoto.
Dando pulos e fazendo movimentos apressados com ambas as mãos, Chico de dona Naná, como chamavam o menino magricela que acabara de entrar na casa comercial, continuou intimando o seu Manoel:
— Corre, se avexe home! A dona Lulu tá chorando muito!
Seu Manoel Oliveira, mais do que depressa, pediu ao freguês que ali tomava uns goles de cana, a ficar tomando conta da mercearia.
— Seu Zequinha, o senhor pode ficar até a minha volta? Minha mulher vai descansar, é o primeiro filho. Tenho que ir buscar a parteira.
— Pode deixa macho, que eu tomo conta daqui até a sua volta. Vá sossegado e que Deus dê um bom parto para a sua mulé, falou seu Zequinha já se colocando por detrás do balcão que separava os fregueses das mercadorias. O homem assumiu um ar de importância ao se colocar no lugar de seu Manoel.
Durante o percurso entre a mercearia e a casa de dona Dodô, seu Manoel não parava de pensar. – Tudo vai correr bem, Luizinha é forte e teremos um menino também forte. Daqui a alguns anos, se Jesus Cristo quiser, ele trabalhará comigo na mercearia, profetizou seu Manoel, homem católico fervoroso.
Não veio um menino, mas sim uma menina, que foi recebida pela família com muito carinho. Eles sabiam do sacrifício que iriam enfrentar, mesmo assim a casa se encheu de alegria pela chegada de Maluz, nome em homenagem aos pais, Manoel e Luíza.
De volta ao seu comércio, encontrou as duas portas completamente escancaradas e o seu Zequinha escorado em um saco de farinha de mandioca, completamente bêbado. Seu Manoel, enfurecido, chutou o homem para que ele acordasse. Sem equilíbrio, Zequinha caiu para o lado e acordou assustado:
— O que está acontecendo, caí do cavalo?
— Caí do cavalo coisa nenhuma, seu sem-vergonha! Você abusou de minha confiança e ficou bebendo enquanto eu estava cuidado de minha esposa que acaba de dar à luz a uma criança, uma filha minha, completou orgulhoso o comerciante.
Zequinha, já refeito do susto e percebendo a enrascada que acabara de entrar, rebateu:
— Seu Manoel, eu estava aqui comemorando o nascimento de seu filho, eu e o meu santo, que bebeu mais do que eu.
— O seu santo bebeu duas garrafas de cachaça?
— É, ele disse que a coisa lá na sua casa estava difícil e ele precisava dar um agrado para os santos que o ajudaram nos trabalhos.
Precisando fechar o estabelecimento e voltar para casa, cuidar da mulher e da filhinha que acabara de nascer, o comerciante enxotou o Zequinha, sem mais polêmica. O bêbado ficou ali na calçada, blasfemando contra o comerciante, afirmando que os santos haviam confidenciado não ser o seu Manoel o pai da criança, nascida de dona Luizinha. Ao tomar conhecimento de tal ofensa, o seu Manoel, em defesa de sua honra, pegou a sua espingarda e foi ao encontro do difamador, descarregando um cartucho de espingarda, calibre 32, matando-o instantaneamente. A felicidade de ter um filho, tão esperado, foi-se embora em um ato de desespero, quebrando o sossego da calorenta e pacata cidadezinha.