O COPO QUEBRADO
O COPO QUEBRADO
Ainda não tínhamos chegado aos anos oitenta, o Estatuto da Criança e do Adolescente nem projeto era. Se o fosse, nenhum dos envolvidos conhecera ou ouvira falar sobre o mesmo. Penso - que ironia! - que histórias como a que irei agora relatar, formaram a base para que o ECA fosse criado.
Todos os professores da Escola Estadual Presidente Artur Bernardes eram leigos – pessoas que dividiam seu pouco saber com os que sabiam menos ainda – mesmo assim a escola, situada em Quartel do Sacramento, se mantinha com a fama de ser uma das melhores do município de Bom Jesus do Galho.
Diplomei-me normalista em uma cidade vizinha - ainda quase adolescente – e fui para Quartel do Sacramento toda orgulhosa por ser professora formada e lecionar naquela escola.
Equiparando-se ao meu orgulho, escolheram para mim uma classe de alfabetização: crianças escolhidas a dedo entre a “nata” quartelense, todas limpinhas, cheirosinhas e ávidas por aprender.
Foi de corpo e alma que me lancei naquela empreitada... empreguei muitos dos recursos didáticos aprendidos no curso, dediquei todos os minutos disponíveis àquela turma. Afinal eu queria o reconhecimento público de minha competência.
Em fins de maio minha classe já sabia ler e escrever.
No dia trinta de junho, fizemos uma festa para comemorar a chegada das férias. Pais e filhos compareceram munidos de elogios à minha pessoa e muitos, muitos presentes!
Fui presenteada com roupas de grife, anéis, colares, brincos e pulseiras de ouro; nunca recebi tantos elogios e presentes como naquele dia...
De repente, na fila dos abraços, surgiu Evandro (um dos alunos), com sua carinha suja, nariz catarrento, mãos escondidas atrás do traseiro e um sorriso que ia de orelha a orelha.
Pela primeira vez olhei realmente para aquele garoto: sempre sujo, maltrapilho, parecendo desnutrido. Que importância eu tinha dado a ele? Nenhuma! Ele só participava das aulas e das brincadeiras porque estava lá – a escola não tinha conseguido colocá-lo em outra classe – mas eu: “a melhor, a mais competente e humana das professoras”, jamais tinha dedicado um só minuto de meu tempo àquele menino, sequer sabia que, como os demais, ele também já sabia ler e escrever, muito menos imaginava a admiração que ele sentia por mim.
A fila dos abraços prosseguia lentamente: abraçava e era abraçada por cada pai, mãe e filho. Agradecia-lhes os elogios e recebia os presentes como algo verdadeiramente merecido.
Chegou enfim a vez de Evandro: em silêncio ele entregou-me um embrulho amassado (certamente papel reaproveitado), desembrulhei o pacote intrigada e arrisquei um olhar! Como quem não acredita, olhei novamente: Dentro do mesmo encontrei nada menos que um velho copo lascado na borda – acredito que era o melhor copo de vidro existente na casa dele – olhei o copo e abracei longamente o garoto.
Naquele abraço, chorei copiosamente...
Chorei, não porque achasse que merecia mais do que aquele copo quebrado e sim porque “aquele copo” era muito mais do eu merecia!
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Terminada a festa, juntei-me à supervisora escolar, contei-lhe a história e juntas resolvemos criar algumas regras sobre como tratar todos os alunos. Coincidência ou não o artigo terceiro do ECA parece copiado da primeira regra que criamos e o capítulo IV alíneas I, II e III do ECA também fazem parte daquele conjunto de regras que até hoje é seguido pela Escola Estadual Presidente Artur Bernardes.
Os alunos que se formam nessa escola pública, indiferentemente se pobre ou rico, passam em vestibulares, concursos públicos, conseguem bons empregos, enfim, desenvolvem-se na vida.
Segundo me contaram, alguns anos depois, aquelas pequenas regras que criamos, foram levadas para a Quarta Delegacia Regional de Ensino de Minas Gerais e de lá... Sabe Deus para onde mais possa ter ido.
Quanto a mim, também ganhei o mundo, bacharelei-me, prestei serviços em altos escalões da Justiça, Tornei-me escritora infanto-juvenil... hoje aposentada, aprendi uma grande lição de vida e ainda guardo com carinho, na lembrança, a imagem da criança que presenteou-me com o que possuía de melhor: um sorriso e um copo quebrado.
Para o leitor fica a seguinte pergunta: quantos copos quebrados são ainda necessários?
Imaculada Catarina
OBS: Escrito em 1980, foi remodelado recentemente para os "causos do ECA" . Até esta data é a única prosa escrita em primeira pessoa pela autora.