DOCES DONZELAS

Na orla da grande cidade, para lá das terras ainda sem urbanizações nem estradas, havia um bairro que emergira de uma localidade dos arredores e nela uma agradável avenida rodeada de vivendas habitadas por pacatas famílias que buscavam a paz e o sossego.

A casa era côr de rosa com dois andares e varandas cobertas de arcos, um alpendre acolhedor que dava acesso à entrada e dois corredores paralelos exteriores muito estreitos que conduziam ao pequeno jardim das traseiras com um suave caramanchão que abrigava bancos e uma mesa verde ao centro.

Nela viviam três senhoras de uma certa idade, três irmãs com o subtil encanto de outrora e uma sobrinha já nos seus quarentas e muitos, com um ar mais modernizado e que trabalhava no centro.

Elas usavam vestidos ligeiramente austeros, apanhavam o cabelo já grisalho num carrapito e seguiam silenciosas uma rotina diária como se vogassem serenas a um palmo acima da superfície.Gastavam poucas palavras a falar como se soubessem há muito o guião das perguntas e respostas previstas e dadas.E havia empregadas que iam e vinham e um gato negro chamado Saul em permanência.

- Saul! Saul! O gato desapareceu outra vez.Deve ter ido atrás delas…é um escravo, coitado!

Elas pareciam, de alguma forma que tinham parado no tempo.Entidades suspensas.Como se fossem vestais de guarda ao templo ou então um ramo de flores brancas mergulhadas numa jarra de vidro transparente cheias de melancolia.

Mas eram três mulheres distintas, cada uma com a sua história que as outras conheciam tão bem como a delas mas que votavam ao silêncio e a um aparente esquecimento num estranho pacto.

Mara, a mais velha parecia conformada e seguia tranquilamente o rumo dos dias .Em Lila transparecia surda uma revolta, ou a saudade e havia com frequência um esgar de desagrado mas os seus olhos eram verdes, lindos e ela era a mais bela das donzelas .Lu era a mais nova, a mais aguerrida, o capitão, a que governava a casa, lidava com a gente de fora e se ocupava de quase tudo.

O que ocultavam estas criaturas tão educadas e tão gentis?Qual tinha sido o seu percurso?Teriam havido homens que as amaram?Qual o porquê destas vidas tão distantes da turba insensata?

Finais do século dezanove, ilha da Madeira, os jovens resolviam partir para escapar à fome e à pobreza.Viajavam á aventura com destino ao Brasil em busca de novas oportunidades.O pai delas já casado teria deixado a mulher para trás com filhos pequenos e fora numa dessas viagens.Só que o barco se avariara e tiveram que aportar no Mindelo, um aglomerado populacional de uma ilha perdida no grande Oceano e que ainda fazia parte do Império colonial português.A terra agradou-lhe, advinhou-lhe futuro, estabeleceu um pequeno negócio e mandou passados meses vir a mulher magra e pequena e os dois filhos ainda crianças.O negócio mais ou menos prosperou.Rui e Isabel, sua mulher tiveram ao todo dez filhos, quatro rapazes e seis raparigas e elas, as três já tinham nascido lá em Cabo Verde.

Cinquenta anos depois, de manhã, as irmãs mais velhas arranjavam-se com calma e desciam ao piso inferior até a uma sala de costura para se dedicarem a trabalhos de crochet e de tricot destinados aos sobrinhos.A mais nova começava o dia mais cedo, com estoicismo, ia até à cozinha dar as ordens, utilizava o telefone antigo só de dois números para encomendar aos fornecedores, ia até ao escritório tratar de papeis ou escrever cartas aos irmãos.

A mãe tinha-lhes ensinado a cuidar dos pássaros feridos, trazendo um que fora encontrado aflito caído do ninho, junto ao seu seio, cuidando-o com incansável desvelo.

O pai tinha morrido apenas com quarenta anos mas deixara-lhes a casa comercial em expansão para gerir.Os rapazes aguentaram o embate, obedeceram às ordens, protegeram como guardas implacáveis a honra e o recato das irmãs.Houve uma que ainda bebé foi deixada deslizar no carrinho numa rua inclinada por uma criada desatenta e morreu.Duas que cresceram e casaram-se.Uma com um judeu abastado e outra com um funcionário do Banco.Mas a primeira não sobreviveu à pneumónica e a outra enlouqueceu aos trinta anos.Ambas deixaram descendência e por isso elas tinham muitos sobrinhos.

- Não se esqueça de tocar a sineta para o almoço! – recomendava Lu.

De tarde, elas passeavam no parque para onde o jardim confinava, iam visitar ou eram visitadas pelas cunhadas e algumas vizinhas, jogavam oring e ouviam concertos e o teatro das comédias na rádio.Não falhavam o chá e as torradas e mais tarde mas ainda cedo o jantar frugal já com a sobrinha regressada do trabalho.Regavam as plantas ao anoitecer.

Elas em jovens também tinham tido pretendentes mas foram sempre tão obedientes e tementes aos decoros e às regras impostas que não tinham deixado as flores dentro de si desabrocharem.O de Mara morrera jovem quando a avioneta que pilotava se despenhara, o de Lila não resistira a uma doença dos pulmões e quanto a Lu acabara tudo quando o seu a tentara apertar no baile e ela sentira o que achava que não deveria sentir contra a sua perna no enlace da dança e o mordera resolutamente no ombro o que o fez soltar um grito, deixá-la no meio da pista e nunca mais a procurar.

Elas subiam pontualmente ao cair da noite para os quartos mas sem primeiro se ajoelharem e rezarem com fé no oratório pequeno armado num vão do corredor do primeiro andar.Orações longas e recitadas discretamente, um sibilar ínfimo no meio do silêncio que caía e placidamente se instalava.

- Mais um dia! – e recolhiam às suas câmaras para desfazer as tranças do cabelo e envergarem as camisas de noite compridas e virginais.

Des jeunes filles rangées de Simone de Beauvoir…ou solteironas de chapéu verde saídas da ficção de Germaine Acrement…na verdade, tinham sido meninas exemplares da Condessa de Ségur , raparigas puras, jovens mulheres em flor cheias de encanto e de candura, obedientes ,escrupulosamente educadas que por isso nem protestaram quando a mãe e os irmãos resolveram decidir vir viver para o Continente, deixando tudo para trás exceto apenas um dos filhos a tratar dos negócios da firma.Lívidas fizeram as malas, envergaram os vestidos brancos e diáfonas subiram as escadas do navio tão serenas, como em contraste os seus corações se sentiam apertados mas sempre sem deixarem transparecer as verdadeiras emoções.

Aos domingos a casa enchia-se de sobrinhos que vinham visitá-las e aproveitavam o pretexto para se verem e conviverem.Mas Lila já não conseguia ter paciência e demonstrava um certo enfado e desejo de os ver irem-se embora e deixarem a casa de novo em paz.Sobretudo pelas crianças a correr, os risos e as gargalhadas, a confusão e a desordem.Começava a descer as persianas das janelas e a fechar os portões à chave num sinal evidente que estava na hora.

Elas ter-se-iam fechado numa campânula, desistido de viver e criado um universo de memórias bem guardadas a que ninguém conseguiria chegar por desconhecer aquela porta secreta que daria acesso às almas sofridas.

Mas nunca se lhes ouviu um único impropério, uma palavra feia, um insulto, um desabafo…uma pequena mancha que comprometesse o quadro.

Na cave a que se tinha acesso por umas escadas na parte de trás da casa acumulavam-se os objectos de uma família em diáspora, um velho piano a que faltavam algumas teclas, pilhas de livros antigos, uma grafonola e muitos móveis fora de uso amontoados.

Durante décadas, a vida á volta delas com os irmãos e com os sobrinhos não cessou um minuto cheia de revezes, glórias e derrotas, casamentos e divórcios,crises e raros momentos de alegria.

E elas mantiveram-se quase sempre impávidas e serenas como deusas no meio das tempestades,muito dignas.

- Delas lembro-me sempre da abnegação, dos bons modos, de passarem um exemplo de um mundo respeitável, de saudade, de valores e de algo precioso e perdido no holocausto dos anos - recordavam os sobrinhos.

Um dia elas mudaram-se daquela casa para um andar mais perto de uma sobrinha e a casa foi vendida e transfigurada.

Mas ainda hoje acontece, um carro parar em frente e alguém sair e ficar a olhar parado durante minutos ou quase um quarto de hora.

Alguém que se lembrava delas, e quereria em vão voltar atrás como se fosse possível guardar a beleza, a delicadeza ou simplesmente uma bela imagem tragada pelo tempo.

José Manuel Serradas
Enviado por José Manuel Serradas em 17/06/2019
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