JOGO PERIGOSO

JOGO PERIGOSO

BETO MACHADO

A timidez de Augusto não permitiu que ele percebesse o intenso brilho no olhar de Giovana. A bela imagem dela, diante de um galanteador contumaz ou de um destemido romântico, seria considerada fácil presa. Já o nosso personagem, ensimesmado na sua introspecção, deixa escapar aquele flerte por entre os olhos, como a água nos escapa por entre os dedos.

Giovana torcia, com o mesmo fervor das beatas, para que a estação do Jardim Oceânico do Metrô Carioca, naquele dia, fosse transferida lá para o Pontal. Sua intuição a fazia acreditar que esse era o destino do homem que lhe encantara os olhos, acelerara o coração e aguçara sua libido, em repouso há algum tempo.

A estação S. Conrado, prestes a chegar, seria o termômetro para medir a temperatura da coragem de Giovana: seguiria ou não na sua investida e na procura de outras estratégias de conquista? Pensamentos e vontades ululavam na mente e no coração daquela jovem caçadora.

Enquanto bem ali à frente, sem esboçar qualquer reação aos sinais reais dos flertes vindos na sua direção, pairava, imóvel, sobre um assento prioritário, a figura enigmática de Augusto. A presa estava diante de uma leoa faminta, sem imaginar o “risco” que corria.

A irregular distância entre as estações de S. Conrado e a do Jardim Oceânico foi suficiente para que Giovana arquitetasse seu bote certeiro. Levantou-se, deu alguns passos e se colocou diante de Augusto. Fixou seu olhar no rosto dele, até que ele a encarasse. O plano deu certo. Augusto fitou os olhos de Giovana de uma forma bem diferente da primeira olhada, lá na estação Carioca, ao adentrarem naquela composição.

O ataque da leoa foi de imediato:

--- Pode me dar uma informação?

--- Se estiver ao meu alcance, sim.

--- Já nos conhecemos de outro lugar?

--- Acho que não... Sou um péssimo fisionomista. Mas penso que não.

--- Você reside na Barra?

--- Não. No Recreio, mais propriamente no Pontal... Quer se sentar aqui?

--- Não. Cansei de ficar sentada. Levantei e aproveitei pra vir tirar minha dúvida.

--- Mas agora já somos conhecidos. Eu sou Augusto. E você?

--- Sou Giovana... Moro na Barra.

--- Ta feliz com teu bairro?

--- Nem um pouquinho. Vivo pesquisando imóveis noutros bairros.

--- Pois eu adoro o sossego do condomínio onde moro.

--- Você fala como um cônjuge fiel.

--- Acertou na mosca. Mas todo cônjuge fiel merece conhecer pessoas simpáticas, para trocar idéias e dialogar num bom nível.

--- Ufa!!! Que susto!!! Confesso: jamais pensei ouvir tão belas palavras, saídas da boca de um homem que se diz cônjuge fiel.

--- É desse jeito que penso.

--- Sendo assim, me encorajo a convidá-lo a tomar um drinque comigo, antes de seguirmos para nossas casas.

--- Convite aceito. Nada a opor.

--- Você é advogado?

--- Não. Administrador.

--- Sua última frase me remeteu ao pensamento jurídico.

--- Nossa atividade profissional, nesse momento, é menos importante que a cerveja gelada que nos espera lá no Nico’s Bar.

--- Então é de lá que a minha memória me trouxe a sua fisionomia... Freqüento muito o Nico’s.

Flutuava no coração e na alma de Giovana um misto de alegria e de alívio. Por um certo momento, ela imaginou que o lançamento do seu anzol nas águas profundas daquele mar de belesura, ali, bem debaixo de seus olhos, fosse dar em fracasso, mas, ao contrário, o peixe mordeu a isca.

A estação terminal do Jardim Oceânico recebe mais uma avalanche de passageiros, gente apressada, ávida para ir pra casa ou para os bares, cumprir encontros agradáveis com amigos ou amores. A maioria vibra com a certeza de que “sextou”.

O Nico’s Bar carrega a fama de ser o preferido dos jovens nerds da classe média do Rio de Janeiro. Isso não impede que Augusto, que se considera fora desses padrões e daquela geração, se fizesse cliente do estabelecimento. Sua idade avançada e sua vasta cabeleira já prateando ou se pondo em tom de gris, pinta no rosto de Augusto um semblante de paizão daquela garotada fissurada em MPB e American jazz. Creio que o fator preponderante para que Augusto ficasse sendo um cliente fiel a esse bar fora a coincidência de gostos musicais.

À saída do bar Giovana carregava uma certeza: teria muita dificuldade para conquistar o coração de seu pretendido. O homem transpirava fidelidade e encarava isso com a mesma naturalidade de quem toma o último copo de cerveja, paga a conta e sai rumo ao lar que o espera, ainda que tenha acabado de se despedir de uma criatura incrível, com a qual manteve um diálogo mais que agradável. Augusto seguiu e deixou com Giovana a melhor das impressões.

A mulher que andava à caça de um amor verdadeiro, já há algum tempo, via-se , agora, diante de uma possibilidade palpável, a despeito da tal fidelidade demonstrada por Augusto.

Contrastando com o semblante alegre de Giovana o ambiente soturno e solitário do seu quarto pouco ajudava a nossa personagem. Sua torturante sede de amar fazia com que ela desacreditasse de certas verdades, embrulhando a mente num papel da dúvida:

--- Se ele não for fiel, deve ser um ótimo ator. E os atores, assim como os poetas, são mestres na arte de fingir.

Morar sozinha deu a Giovana o poder de conversar consigo mesma. Não imaginava que isso pode ser interpretado como um transtorno de comportamento. Sua vizinhança já está acostumada com seus monólogos reticentes e intermináveis.

--- Teria sido producente meu primeiro bate papo com Augusto? Será que lhe agradou nossa conversa? Ah... Mas também se ele não gostou... Paciência... Mas acho que não deixei nenhum furo... Pelo menos ele demonstrou ser um cavalheiro. Totalmente diferente daqueles molecotes mimados, ostentadores de inteligência e mais nada.

Um “bichinho carpinteiro”, inquilino da memória de Giovana bateu martelo até que ela decidisse visitar o apartamento, cujo anúncio de aluguel lhe chamara a atenção, pelo preço abaixo dos padrões cobrados no Recreio dos Bandeirantes. O endereço a levou a conhecer o emblemático TERREIRÃO. Amou a movimentação das pessoas desprovidas de pose, interagindo com simplicidade, do jeitinho que aprendeu na adolescência, vivida em comunidade.

No transcorrer da semana seguinte ao primeiro encontro, Giovana fechou negócio com a imobiliária. A ansiedade a atormentava. Não por conta da sua mudança, mas pela espera de um telefonema, uma mensagem de texto ou de áudio, vindo de Augusto. Ela estava ávida por lhe dizer que já era sua vizinha.

Uma idéia fixa povoou a cabeça de Giovana durante quase toda a semana. A espera de uma ligação telefônica é angustiante. E essa angústia afetou o raciocínio dela, tanto que a fez perder a noção do risco que é morar próximo de um pretendido amante casado.

O novo apartamento da mulher sedenta de amor ainda não se acostumara com os monólogos reticentes encenados por Giovana.

--- Se ele não ligar até amanhã, juro que mando um zap... Se trocamos contatos é porque confiamos... De amanhã não passa.

Augusto reserva dez minutos do seu horário de almoço para conferir suas comunicações não atendidas... Leu a mensagem de Giovana com uma aparente naturalidade. Aquele “Oi. Bom dia.” merecia uma atenção maior do que a que ele despendia, no momento. Mas não se preocupou com a falta de tempo, pois compensaria, ao fim do expediente, com um diálogo pessoal. E responde com linguagem concisa:

--- Boa tarde... 17.30 Plataforma da estação Carioca, nos veremos. Bjs.

Giovana quase cai da cadeira, ao ler a resposta de Augusto. Acariciou o aparelho telefônico como se tivesse fazendo isso com a pessoa amada. Suas colegas de trabalho perceberam mas evitaram o “bulling”. Limitaram-se aos cochichos, ao pé do ouvido.

Expediente encerrado, semana de trabalho completada e, de novo, é sexta feira. Cada brasileiro trabalhador tem seu fetiche com esse dia da semana. Até nos longínquos rincões rurais da Pátria amada verifica-se um certo tipo de comemoração pela chegada desse dia.

A estação Carioca do Metrô aguarda com paciência a chegada de Augusto e de Giovana. E, com a parcimônia dos melhores cicerones, os recebe quase simultaneamente. Rolaria, outra vez, dentro de uma composição de transporte público, um clima de romantismo, exalando um olor romântico de amor proibido.

Mas Augusto não pretendia que aquela amizade descambasse rumo a esse abismo. As suas afirmações de que é um homem conjugalmente fiel são verdadeiras.

Só que uma fêmea caçadora e com sede de amar enfrenta os percalços e os abismos que surgirem, com força e esperança de superá-los.

Augusto terá que demonstrar muito tato no trato com uma situação que ainda não experimentara e jogo de cintura para resolver essa equação.

As peças do jogo de xadrez já estão sobre o tabuleiro. Vamos ao jogo?

Após a troca de beijinhos no rosto o casal de amigos sentou-se, lado a lado, num dos bancos da plataforma. Conversaram amenidades, falaram sobre suas atividades laborais e da ansiedade para que a sexta feira retornasse. Tanto foi o foco e a atenção nos assuntos surgidos que deixaram dois trens seguirem, sem que fizessem menção de embarcar.

Giovana percebeu que estava na hora de endurecer o jogo. Toma uma das mãos de Augusto e ataca:

--- Espero que não te assustes. Preciso te fazer uma confissão. Passei essa semana com meu coração descompassado.

--- Sério?

--- Verdade... E não sou cardiopata. Penso que estou diante de quem pode curar-me desse mal.

--- Acho que remediar é possível que eu consiga, mas a cura é exclusividade das ações de DEUS.

--- Você é religioso?

--- Não pratico nenhuma religião, mas observo os melhores preceitos de todas elas para que eu possa interagir com nosso Pai Supremo, sem precisar sair da minha casa, nem deixar de fazer coisas que me aprazem.

--- Esforço-me pra não acreditar que você não é extra-terreno.

--- Sou tão terrestre quanto todos os homens que conheces.

--- Nunca se interessou por outra mulher?... Quando falei do descompasso do meu coração, eu quis falar de paixão e de amor. Fiquei submersa nesse rio caudaloso esses sete dias.

Augusto vira-se para responder com um olhar tão incisivo que assusta Giovana.

--- Já... Uma vez... Não foi uma boa experiência. Nem pra mim, nem pra ela... Foi quando percebi meu dom da fidelidade.

--- Inacreditável!!!

A contundência e a nudez da verdade de Augusto foram o cheque mate, motivador do desânimo de Giovana, percebido pelo parceiro de viagem, nos fins de semana.

--- Sempre que precisar de um amigo, conte comigo.

--- Estou certa que vou precisar.

Giovana, resignada, solta a mão de Augusto e levanta-se, apontando para a chegada do terceiro trem, desde que entraram na plataforma.

A viagem até o Jardim Oceânico foi tranqüila e os dois chegaram à conclusão de não beberem, respeitando o clima produzido pela conversa franca... Fim de um jogo perigoso.

Roberto Candido Machado
Enviado por Roberto Candido Machado em 10/06/2019
Código do texto: T6669478
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2019. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.