ATÉ QUALQUER PALAVRA
Quando nos despedimos, o senhor disse “até qualquer palavra” e eu fiquei intrigado. Eu tinha saído para comprar o presente de aniversário de um amigo e, indiferente às vitrines pensei, escolho qualquer coisa na papelaria e saio rápido.
Há pouco tempo se dizia da cidade que esse lugar era o fim da linha no mapa, fazer compras tinha endereço certo na cidade vizinha. Hoje em qualquer esquina, com um pouco de exagero, pode se encontrar mercadorias e preços. Morei nesse bairro quando ainda não havia aqui mais que duas lanchonetes. Tudo está mudado.
Caminhei entre oficinas mecânicas, farmácias, postos de gasolina e bares, muitos bares e igrejas. Do alto dava pra ver o shopping do calçado. Sapato e gravata não. A vista do centro da cidade espalha o ritmo do coração no concreto. Dei as costas para a zona norte e pensei que o presente ideal fosse algo que traduzisse esse espírito de crescimento, de euforia, de fartura. Ou, ao contrário, algo que demonstrasse a efemeridade que pretende impressionar.
Com a cabeça nas nuvens, entrei na papelaria. Pedi Coca-Cola. Dei meia volta, o trânsito impedia a passagens. Sem pressa esperei o fluxo, no semáforo as cores. Foi nesse momento que reparei a existência real da papelaria. O estabelecimento não estaria ali por acaso, correspondia ao meu desejo de encontrar o presente ideal de aniversário.
Seu lábio inferior estava manchado de chocolate e antes de dizer "pois não", sua mão lançou ao lixo a embalagem metálica que cobria seu kopenhagen. O senhor me apresentou a variedade de formas, cores, embalagens, caixas para presente e tudo isso invadiu meus olhos impedindo qualquer decisão. Chocolate seria bom presente. Pedi cigarros, com um sorriso confirmou com um abafado “não vendemos”. Então falamos longamente sobre a vida, pomar e vermes. Quando percebi a passagem do tempo sai decidido que levaria cigarros de presente como símbolo da fugacidade com que tenho percebido o tempo presente.
Lembro-me do senhor dizer que amigos e parentes não compreenderiam que eu me apresentasse com cigarros para o aniversariante e riu quando respondi que preciso aproximar ideias desencontradas em orações subordinadas para simplificar tudo e dar verossimilhança para as coisas que penso. Nós rimos. E seu riso era desconcertante. Como se concordássemos me silenciou com uma pergunta: carecemos mesmo de realidade?
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Baltazar Gonçalves