MEIO A MEIO
- Anjo…
- Pois não Tônia. Estou bem aqui do seu lado. Precisa de ajuda?
- Sim. Estou angustiada... Quero ajudar minha cara metade, mas não estou tratando-o com a paciência que ele merece.
- Isso não é verdade. Tenho visto que você cuida diariamente dele; dá os remédios no horário certo, faz massagem, oferece seguidamente água, frutas, lanche. Percebi que no criado-mudo tem um copo que você cobre com um pires para não cair nada na água. Isso é carinho! Quando ele vai ao banheiro você corre para arejar o quarto abrindo a janela, colocando um aromatizador, afofando o travesseiro, dando uma ajeitada nos lençóis. Percebi também que quando ele volta ao quarto, você corre ao banheiro para ver se ficou tudo arrumado e limpo: tapete, toalha, enfim, tudo ajeitado para quando ele próprio retornar, encontrar favorável.
- Tá Anjo, mas...
- Tônia. Vi também que você filtra as ligações telefônicas dos amigos e familiares, só deixando-o atender quando está acordado. Quando sua cara metade está cochilando, não o acorda. Sabe que enquanto estiver dormindo, não está sentindo dor.
- É... Não gosto de incomodar quando está descansando...
- Vi você passeando com ele embaixo da parreira e depois colocando a cadeira de rodas na sombra do jirau.
- Sim, ele gosta muito do nosso jardim, mas...
- Sei que é você quem está fazendo as compras de mercado, padaria, açougue e pagamentos bancários e que faz tudo isso sempre correndo para ele não ficar muito tempo sozinho em casa.
- Anjo, me deixa explicar?
- Tônia. Sei também que é você quem cozinha, lava as louças, faz faxina, lava e passa roupas.
- Tá tá tá. Já sei disso, mas quem não faria?
- E tem mais: sei que é você quem troca os lençóis e limpa o chão, sujos de diarreia e vômito...
- ANJO! CHEGA! Não precisa entrar em mais detalhes! E esses últimos aí que você falou, só aconteceram no momento da crise. Não irão acontecer mais! Assim você não está me ajudando!
- Tá bom Tônia. Só quis abrir teus olhos.
- Sei disso. Suas intenções são sempre boas, mas tudo isso que fiz, continuarei fazendo sempre que precisar, sem reclamar! Enquanto estou fazendo as tarefas domésticas e minha cara metade me chama pedindo alguma coisa, não reclamo, o que me incomoda é quando isso acontece NAQUELE horário.
- NAQUELE horário? Que horário é esse?
- É naquele horário do lazer, Anjo. Naquele horário em que consigo sentar a bundinha no sofá, descansar e fazer as coisas que gosto: artesanato, leitura, filme e música.
- Ah tá! Sei. É naquele horário em que você está crochetando uma toalha de mesa para doar para a Igreja, relendo o livro “Dom Casmurro” pela quinta vez (já estou enjoado desse livro), assistindo a quarta temporada da série House of Cards ou praticando o violino. Sei que você ama tudo isso, Tônia!
- Pois é. E quando chega esse momento de relaxamento, minha cara metade me chama e minha reação é de irritação e impaciência. Não quero agir assim!
- Entendi. Quando sua cara metade lhe chamar e você estiver nesse momento de descanso, quer ter calma, mansidão e serenidade. Certo?
- Certo. Sei que ele está com dores! Entendo isso, anjo! Quero ajudar sempre e da melhor forma possível, mas com doçura e amor; sem mau humor e cara feia. Para isso, tenho uma ideia e você pode me ajudar.
- Diga lá! Todas suas ideias sempre deram certo, Tônia. Pode contar comigo!
- E se eu sentisse dor? Uma dor pequena só para me lembrar de que não é bom sentir dor...
- Você sentir alguma dor? Para quê? Não entendi.
- Anjo. Veja bem. Teria que ser uma dor pequena. Não poderia ser uma dor de estômago ou uma forte dor de cabeça, por exemplo. Nada que me deixasse acamada, porque daí seriam dois acamados. Uma dorzinha apenas... Como um beliscão.
- Como um beliscão? E daí, Tônia?
- Funcionaria assim: toda vez que eu estivesse no meu momento de relaxamento e minha cara metade me chamasse, você beliscaria meu braço. Aí me lembraria de sorrir, agir com docilidade e presteza, sem reclamar. O que acha? Pode dar certo?
- Claro que vai dar certo. Tudo o que é feito para o bem, dá certo!
- AAAIIIIII! Você beliscou forte meu braço, Anjo!!!
- Ué? Não era para beliscar toda vez que ele te chamasse? Ele está chamando agora. Pois então vá lá. E lembre-se Tônia: carinho, doçura e amor.
...
- Oi amor! – diz Tônia entrando no quarto em penumbra e já abrindo a janela para a entrada de uma réstia de luz. – Está tudo bem? Precisa de alguma coisa?
- Oi amor. Estou com muita dor de cabeça!
- Puxa amorzinho. Acabou de tomar o remédio para a dor! Ainda não fez efeito. Aguenta mais um pouquinho. Já vai passar. – fala delicadamente, fazendo massagem nas têmporas. E continuou: - De 1 até 10, qual a intensidade de sua dor?
- 10! – responde a cara metade.
- Então vamos dividi-la em dois: você fica com 5 de dor e eu fico com os outros 5. Meio a meio! Assim não fica tão pesado para nenhum de nós. O que acha?
Tônia, continuando a massagear as têmporas doloridas, encara dois olhos azuis celestes e percebe uma lágrima que escorre na fronha do travesseiro e um sorriso a se formar. Retribui com um sorriso.
Sente no braço que fora beliscado, três tapinhas de leve. É o Anjo que também sorrindo, sussurra:
- “Muito bem Tônia! Muito bem! Essa é a minha garota”.
Simone Possas Fontana
escritora gaúcha de Rio Grande-RS,
membro da Academia de Letras do Brasil/MS, ocupando a cadeira 18,
membro correspondente da Academia Riograndina de Letras,
autora dos livros MOSAICO, A MULHER QUE RI, PCC e O PROMOTOR
graduada em Letras pela UCDB,
pós-graduada em Literatura,
contista da Revista Criticartes,
blog: www.simonepossasfontana.wordpress.com