Conto das terças-feiras - Homenagem aos amigos das antigas

Gilberto Carvalho Pereira, Fortaleza, CE, 4 de junho de 2019

Este conto é em homenagem a dois amigos de adolescência, um nem tanto, pois, à época dos acontecimentos desta narrativa já ultrapassava os 20 anos de idade. Ambos eram bem conhecidos entre os amigos de nossa rua e dos colegas de colégio onde estudávamos. Eles moravam, como todos nós, em Fortaleza, na Rua Antônio Augusto, além da casa do Padre Dourado, última fronteira daquela rua, antes da sua ligação com a Duque de Caxias, novo perímetro de expansão do Bairro Aldeota, entre os anos de 1958 e 1962.

Marcos, o de mais idade, era um pouco avantajado nas suas medidas corporais. Andava de pernas abertas, tal o volume de suas coxas, e carregava à sua frente, uma proeminente barriga. Ele era feliz, sempre trazia nos lábios um gostoso sorriso. Tinha espírito de adolescente, quase infantil, não que ele tivesse o seu desenvolvimento mental aquém do índice normal para sua idade, ele era realmente um ser feliz, um bonachão, como se diz hoje em dia, aquele ou quem é extremamente bondoso e sem afetação. Todos nós gostávamos dele, de sua maneira de ser e, embora tentasse, nunca o vimos arranjar uma namorada. Elas corriam dele, exatamente pelas características acima anunciadas.

A maioria de seus amigos o chamava de O Gordo, eu não gostava disso, mas, acredito, ele não se importava, não tinha trauma pela sua condição avantajada. Também, acredito, não ficaram sequelas daquele tempo de nossas brincadeiras de adolescentes. Guardamos nossas amizades até quando, por grave acidente, quando tentava consertar a geladeira de sua casa, sem desligá-la, um choque o jogou longe, vindo a bater com a cabeça em uma coluna, falecendo imediatamente pelo violento traumatismo craniano sofrido. Foi uma perda lamentável para os seus familiares e amigos. Infelizmente, eu me encontrava morando em São Paulo e não pude acompanhá-lo para um último adeus.

Mário, por sua vez, era uma pessoa de pouca estatura, não passava de 1,50 m, roliço, braços e mãos pequenas, cabelos levemente ondulados, cor de fogo e rosto enfeitado com pequenas manchas, efélides, que lhe faziam assemelhar-se a descendente dos povos nórdicos. As sardas ou efélides são manchas causadas pelo aumento da melanina na pele. Existe uma tendência familiar e surgem principalmente nas pessoas de pele clara e ruivas. Esta característica, verdadeiramente peculiar na pele do Mário, rendeu-lhe o apelido de capote - galinha-d'angola (Numida meleagris). Ele também não se importava com isso, não havia a disseminação da palavra “bullying”, que descreve atos de violência física ou psicológica, intencionais e repetidos. Na verdade, nunca fora nossa intenção, de seus amigos, machucá-lo, éramos todos ingênuos, não havia maldade nas nossas brincadeiras.

Essa dupla de irmãos era bastante estimada entre os amigos e conhecidos, sendo Marcos, pela idade um pouco acima dos demais, mais afastado do grupo. Mesmo assim, por muitas vezes ele era visto sentado na calçada da Rua Antônio Augusto, a discutir com os demais adolescentes, após uma partida de futebol, jogada no campinho da Rua Jovino Guedes. Mário, apesar da pequena estatura, da aparência desajeitada e roliço corpo, era considerado bom jogador. Corria mais que todos nós, sabia driblar e tinha magnífica visão do campo, da colocação dos companheiros de sua equipe e do gol. Era um goleador de primeira e todos o escolhiam para o seu lado, na certeza de que sairiam vencedores se contassem com o Capote em seu time.

Mesmo quando derrotados, continuávamos amigos. Éramos como irmãos, um procurando ajudar o outro, erámos doze adolescentes e nosso ponto de encontro acontecia sempre na calçada da casa de Marcos e Mário, mesmo sua mãe não gostando disso. O principal assunto, depois do futebol, envolvia as garotas da nossa rua e adjacências. Muitos desses assuntos eram inventados, divulgados para enaltecer os próprios contadores dessas estórias. Cada qual descrevia os encontros com sua garota preferida. Quando a menina em questão descobria que era alvo do falatório dos garotos, fazia escândalo, deixando de falar com o grupo por longo período. Aos poucos, principalmente nas festas promovidas por uma das garotas, sempre na garagem de sua casa, aquela que se dizia ofendida, procurava se desculpar e tudo voltava à tranquilidade. Constituíamos uma turma bastante unida e feliz, era a década de 1960.

Nas festas de garagem, eu era o responsável por levar os discos long play da coleção de meu pai, com músicas de Ray Conniff, Beatles, The Rolling Stones, Bob Dylan, The Jackson 5, e outros. Entre os brasileiros, ele tinha Milton Nascimento, João Gilberto, Tamba Trio, Os Originais do Samba e outros. Havia também os boleros mexicanos.

Tudo era diferente da época atual, sem droga, sem violência, sem bullying. Éramos felizes e sabíamos disso!

Gilberto Carvalho Pereira
Enviado por Gilberto Carvalho Pereira em 04/06/2019
Código do texto: T6664391
Classificação de conteúdo: seguro