BADULAKI
"Mas, que Ser desprezível e solitário" - Pensei ao chegar da escola e ser recebido com um falso sorriso pelo Senhor Badulaki.
Eu tinha por volta de 11 anos de idade e desde que me lembro, vez ou outra me deparava com ele sentado rente á mesa da cozinha almoçando. Ele sempre usava uma cartola. Mesmo que sorrisse. Mesmo que brincasse. Mesmo que fizesse piadas e me desse o doce de abóbora em formato de coração. Eu percebia que algo nele faltava e suas vindas para o almoço se tornaram cada vez mais frequentes nos anos seguintes.
Aos 12 anos eu o via todos os finais de semana.
Aos 13, eu o via de Sexta também.
Ele, sempre acompanhado de um cigarro, tinha no aroma um mix de perfume barato e tabaco do Paraguai.
Era 31 de Dezembro em meio ao tumulto de pessoas celebrando a falsa modéstia, amizade, companheirismo e alegria, no alto de meus já 20 anos, eu o vi sentado no banco da praça. A luz vermelha na ponta do cigarro o fazia companhia. Daí então, me dei conta. Já faziam quase dez anos que eu não o via. Ali, sentado no banco cansado da praça, ninguém mais o parecia ver. Infelizmente, tudo o que me veio em mente foi:
"Mas, que Ser desprezível e solitário".
A vida se seguiu.
Os amores vieram. Os amores se foram.
Os amigos se fizeram presentes, mas logo sumiram.
Vida que segue. Amizade que segue. Apenas no Instagram. Ninguém realmente se importa e logo, a rejeição também aconteceu nos empregos.
A falsa companhia e simpatia parecia bem menos frustrante em boates e puteiros.
Por osmose eu fumava. Todas pareciam sempre ter o mesmo aroma do Senhor Badulaki. Em cada quarto, uma luz vermelha sobre o batente da porta. Aquele era o meu vício. Aquele era o meu cigarro paraguaio. Em comum, apenas o olhar que todas me davam em algum momento, pós prazer. Mesmo que houvesse silêncio. Mesmo que não perguntassem, eu podia entender o que pensavam:
"Mas, que Ser desprezível e solitário".
Num emprego de merda, onde eu limpava túmulos no Cemitério da Paz Solene, certa vez, fui promovido. Agora, eu ajudava a identificar e orientava a direção dos corpos para os velórios que aconteciam lá mesmo.
Num dos ouvidos eu tinha sempre um fone e nunca me questionaram a respeito. Deviam achar que era nele que eu recebia ordens, que fosse um rádio comunicador. Desde o primeiro dia, tudo o que eu ouvia nele, o dia inteiro e mesmo quando o esqueci em casa, aquele ambiente me soprava aquela canção que por oito horas diariamente me fazia companhia.
"Deixe-me ir
Preciso andar
Vou por aí a procurar
Rir pra não chorar".
Na voz do Cartola, "PRECISO ME ENCONTRAR"
me emocionava, me entristecia e me alegrava.
Candeia, o autor, nunca teve tempo de vida física o suficiente para saber a importância daquelas palavras para tantos como eu, mesmo mais de quarenta anos depois de tê-la composto.
Chovia. E num Sábado, gelado, um novo corpo chegava. Alguns corpos, nunca reconhecidos, eram alocados numa sala igualmente gelada, onde aguardavam por uma autorização por escrito para uma breve e coletiva unção e enterrados como indigentes.
Chegavam não em caixões de mármore ou madeira grossa e fina, mas sim em papelão improvisado.
Naquela época do ano, a maioria dos que assim chegavam eram de moradores de rua. Em sua maioria, morriam de frio. Alguns de cirrose. Outros queimados por pessoas que viam naquilo, a oportunidade de limpar as ruas. Em outras palavras, eram vítimas de Bolsonaros da vida.
Contabilizei, identifiquei com números e...
Me aproximei de um dos corpos. Estava encolhido. Era raquítico e a pouca barba que tinha era volumosa. Provavelmente morreu em consequência do frio naquela madrugada. Fazia dois graus e era a maior temperatura daquelas últimas duas semanas. O Sr. Badulaki morreu de frio. Mal o reconheci sem a cartola.
-Congelou foi? - me perguntou um dos assistentes.
- Ele ou eu? - Perguntei sorrindo.
- Eu conhecia ele. Vivia lá em casa quando eu era criança. - Eu me abri sobre algo pessoal, algo que eu não costumava fazer.
- Ah é? Qual era o nome dele?
- ...
Alguns segundos de silêncio e o assistente saiu da sala.
- Eu não sei. - Eu disse para uma platéia de cadáveres.
Em tantos anos de convivência e "Bom dia" trocados quando nos esbarrávamos pelas esquinas da cidade, eu nunca havia perguntado qual era o nome do Senhor Badulaki. Eu o chamava assim por costume, desde sempre. Era como todos o chamavam.
Horas depois, eu via de longe a terra molhada sendo esburacada. Corpo a corpo, aquelas pessoas sem nome, sem família ou amigos, eram submersas. Naquele dia foram quinze. A princípio, seriam dezesseis, mas um dos corpos veio a ser reconhecido a tempo. Era o meu último dia antes das férias e boa parte da grana que recebi, foi destinada a um caixão símples, mas bonito e elegante. Era um caixão digno de alguém que usava uma cartola.
Eu o velei junto ao padre enquanto Cartola me consolava ao ouvido. Tive que inventar um nome para ele.
ANTÔNIO AGENOR BADULAKI.
Garoava de leve quando eu saí do cemitério. Cumprimentei os vendedores de flores na entrada e rumei ao bar mais próximo.
- Boa tarde. Você tem doce de abóbora daquele de coração?
- Não, não. Faz tempão que não sai esse aí. Mas tem Maria Mole.
- Não. Chega de ossos por hoje. Obrigado.
O futuro nos trouxe tecnologia, facilidades fúteis e leitura biométrica, mas deixamos para traz os corações de abóbora. O Senhor Badulaki, em meio a tanta solidão, sempre teve um coração a oferecer.
A chuva aumentou e da porta do bar, pude ver o dono me olhar e por um segundo eu juro que o ouvi dizer:
"Mas, que Ser desprezível e solitário".