DOIS CAMINHOS

Era magro, jovem e tinha um olhar nostálgico.Estudava Finanças na Universidade e a sua vida encontrava-se numa espécie de encruzilhada.

Tinha ficado perturbado sem o demonstrar quando no sábado anterior, sentado a assistir ao espectáculo, a personagem da peça de Miller, Arthur Miller tinha dito aquela frase que, desde então, fazia eco na sua cabeça.”Nem sempre se podem escolher dois caminhos”.

Vinha com a Marianinha Vilanova de comboio desde Cascais direitos à capital para ela o levar à Cartomante.

A Marianinha era um pouco mais velha do que ele, andava pelos trinta e poucos e tentava sair de um caso amoroso que a deixara de rastos, esgotada e revoltada.

Não se cansava de recontar a violenta cena de ruptura com o tal patife vinte anos mais velho, que a seduzira, explorara física e sentimentalmente, a trocara por outra anormal e ainda lhe dera uma sova depois de saber que ela saíra uma noite com um amigo.Destilava o seu azedume principalmente em discurso directo, deixando-se enlevar pelo enredo e falando tão alto que os outros passageiros da carruagem não tiveram outro remédio senão ouvir todo o seu arrazoado:

- Então virei-me para ele e gritei (e quase que gritava mesmo)PATIFE! ÉS UM PATIFE! FOSTE O MEU PRIMEIRO HOMEM.TINHAS IDADE PARA SER MEU PAI.ESTRAGASTE OS MEUS MELHORES ANOS.JÁ NÃO ME QUERES MAS NÃO DEIXAS QUE EU REFAÇA A MINHA VIDA.PATIFE!ÉS UM PATIFE…

- Marianinha, fala mais baixo que está toda a gente a olhar e como estás a reproduzir fielmente as palavras que disseste ao Gustavo as pessoas julgam que o vilão sou eu e daqui a pouco vêm até aqui para me prender.Eu até não me importo mas tudo isto deve soar estranho.

As pessoas, de facto, começavam a comentar:

- O rapaz não parece com idade de ser pai dela.As mulheres são sempre exageradas.

- Pois, tem um ar de que não parte um prato mas parte a loiça toda.São os piores!

Ele alvitrou que mudassem de assunto e que ela falasse mais baixo e assim foi.

Afinal porque se metera naquela aventura absurda de ir consultar uma vidente, taróloga ou lá o que fosse?

-Vais ver que ela é óptima, óptima.Advinha tudo!E é muito natural, vê as cartas, interrompe, vai ver as batatas ao lume e regressa quase sempre com uma revelação surpreendente - assegurou-lhe Marianinha.

Ele assentiu, meio divertido consigo próprio.Na verdade tinha-se deixado convencer em procurar aquele tipo de ajuda porque se sentia…confuso, dividido como que desembarcado numa estação que fosse a paragem de vários comboios que seguiam para direcções opostas.

Não sabia se devia continuar naquele curso ou mudar para a sua verdadeira paixão, as Belas Artes que o pai, um brutamontes marialva, considerava uma coisa própria de maricas.Se devia escolher como futuro a pálida,calma e deslavada Fernanda cheia de dinheiro ou soçobrar nos braços da prima Clara, uma torturada e excitante parceira na cama,diga-se a verdade, uma verdadeira bomba sexual porque, na verdade, andava com as duas ao mesmo tempo e começava a tornar-se difícil gerir a situação a todos os níveis.

Lá chegaram a Lisboa e tomaram o autocarro com destino à Avenida da Liberdade em que numa das perpendiculares vivia e atendia Madame Estela, a cartomante.

Entraram no prédio antigo, pombalino e subiram até ao quarto andar por umas escadas estreitas e íngremes.Tocaram à campainha da porta e passados dois longos minutos alguém abriu.

Era uma mulher de idade indefinida, de robe de cetim roxo e turbante árabe que os conduziu até ao cantinho das consultas.

Atravessaram uma longa sala de jantar com uma mesa comprida posta talvez há dias, meses ou até anos com os copos ainda sujos e cheios de pó.Um bolo ressequido que parecia um fóssil.E até um pão verde, cheio de bolor.

-De uma festa que eu dei há anos – explicou a anfitriã.

Ele começou a sentir-se voando sobre um ninho de cucos.Sentaram-se à volta da mesa.

Estela concentrou-se, fechou os olhos e inspirou profundamente antes de ordenar-lhe “Então diga!”.

Ele lá lhe recontou por alto os seus dramas enquanto Marianinha fingia dar atenção a um biblot que representava um centauro ou uma fénix, qualquer coisa inindentificável.

Madame Estela quedou-se numa longa espera sem falar e depois opinou.

-Você é um romântico!Um romântico empedernido…talvez incurável.

E começou a deitar as cartas:

-Cá está, cá está ela , a dama de espadas.Não sei se esta é a Nanda ou se a maluca da Clara.Vamos ver.

Lançou outra carta em cima da mesa.A Dama de Copas.

- Esta representa uma certa paz, a estabilidade, alguma segurança material…mas é muito desenxabida, não tem graça nenhuma!...Esta, pelo contrário, dá saltos de corça, parece endemoninhada, um monstro de sensualidade,ah sim, pois, uma cadela no cio…deixa ver…

Mário e Mariana ficaram suspensos, a aguardar o veredicto…

- Então com qual delas devo ficar?- arriscou ele.

Madame tirou uma nova carta.Um valete.E outra.Outro Valete.

-Um homem!...Que faz este homem aqui?

Mário engoliu em seco e corou até aos ossos.

“Será que ela advinhou o que eu e o Manel fizemos sábado passado com o ginásio sem ninguém, enquanto estávamos os dois a tomar duche?Aconteceu.Nem eu sei como.Uma vez sem exemplo com certeza.”

Marianinha pressentiu algo estranho e começou a olhar em volta estarrecida.Ele acompanhou o olhar dela e não queria acreditar.

As taças que estavam em cima da mesa começaram a mover-se e a trocar de posição, o candeiro do tecto subitamente rodopiou sem motivo , uma janela abriu-se de repente e um vento quente soprou-lhes na nuca.

-Ai! – gemeram os dois.

- Madame Estela!Madame Estela!Parece que ela entrou em transe!

- Tenho medo,Mário!Vamos embora.

- A garganta dela está a inchar!

Nesse instante, os dois já estavam apavorados.Levantaram-se, uma cadeira caiu com estrondo.Um cheiro a esturro chegava lá de dentro, da cozinha.Ouviram um grande estalo e as luzes apagaram-se.

Madame Estela arregalou os olhos, querendo falar mas sem conseguir.

-Madame Estela.Agradeço muito mas acho melhor ficarmos por aqui.Tem aqui o seu dinheiro.Marianinha, vamos.Despacha-te.Depressa,

Fenómenos inexplicáveis.Mistérios milenares.Fantasmas, dimensões ocultas…ainda hoje não fazem ideia.

Eles despediram-se em pânico e ainda a ouviram murmurar com a voz alterada

-Nem sempre se podem escolher dois caminhos…nem sempre três!

Fecharam a porta a tremer,desceram as escadas saltando degraus, quase caindo pelas escadas abaixo.Na rua deram as mãos e correram que nem fugitivos num filme de terror.Desceram a Avenida como se fossem tirar o pai da forca.Passaram pelos Restauradores que nem setas e entraram no Rossio esbaforidos e com o coração aos saltos.Enfiaram pela rua da Betesga e aterraram na primeira tasca que encontraram.

Sentaram-se a uma mesa e pediram ao homem que os olhava por trás do balcão,com um ar desconfiado.

-Por favor…uma bebida muito forte.Fortíssima de preferência!Duas! – Mário voltou-se para a amiga – achas que aquilo foi uma alucinação?Já ouvi falar em loucura induzida…

-Cala-te.Não digas nada.Ainda estamos perto.Ela pode advinhar!

-Sim, tens razão.Ela advinha …Tudo!

José Manuel Serradas
Enviado por José Manuel Serradas em 26/05/2019
Código do texto: T6657376
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