A lei

A lei

A ideia apanhou-a noite dessas no meio da madrugada. Uma ideia é como uma abelha que voeja e se vai e volta a voejar e torna a se ir. Despertara com a latomia dos cães de rua que se agravara agora que o tempo esfriou. Os pobres diabos pareciam padecer com a queda da temperatura na madrugada e começavam com a mexida lá deles. Talvez que a disputa e a correria lhes aquecesse o sangue e ajudasse dominar o incômodo da friagem. Deviam ser uns quinze, credo! Faziam lembrar “A hora dos ruminantes” de José J. Veiga. Começou com o pretinho descadeirado que chegou se arrastando a cerca de um mês. Os vizinhos penalizados da criatura doentinha, puseram-se a atender-lhe as necessidades, ele foi se recuperando e, apesar da sequela que o botou manquitola, parece já restabelecido. Alcunharam-lhe Tortinho. Ela refletiu: cão batizado, cão adotado! O bicho ficou.

Como a água e a ração oferecida pelos sensibilizados sobejava do consumo do convalescente, logo no segundo dia surgiu a cadela grande, magra e covarde. Também ela recebeu um designativo, foi Seu Tonho Pedreiro quem primeiro a chamou de Hiena, pegou, ficando também batizada. Depois apareceu o Lanzudo, vira-lata puxado para poodle, de pelo espesso de uma cor encardida que um dia fora branca. Trazendo consigo o primeiro conflito porque o Tortinho já se via dono do território e cismou de botar banca, mas percebeu logo que não poderia fazer frente ao intruso enquanto não se curasse de suas moléstias. Optou pela paz Também o Lanzudo se estabeleceu como morador. E assim sucessivamente vieram a Miserinha, o Escovinha, a Quatro Olhos... E tantos outros que não se venceu o desafio de nomear a todos. E, foram ficando a engrossar a matilha, apropriando-se da provisão sustentada pelos moradores humanos. Cada novo chegado sentia-se em casa tão logo serenadas as rusgas do primeiro contato.

Assim a rua silenciosa naquelas repousantes horas noturnas perdeu sua paz. Cachorro pobres nunca dormem, passam o tempo se coçando e farejando o ar, sempre a disputarem um lugar, a ração, a água, quando não uma fêmea no cio, num escarcéu de latidos, rosnados e ganidos que não deixa ninguém dormir.

A abelha da ideia voeja novamente. Os ajuntamentos são inevitáveis a partir do primeiro. Quando tomava o ônibus todas as tardes no ponto daquela praça do centro acompanhou um ajuntamento humano que muito a entristeceu o espírito. O primeiro apareceu por acaso, acomodou-se num elevado sob a grande murta com os seus teréns poucos, uma mochila velha, um cobertor imundo, um papelão sobre o qual dormia. Passava os dias e noites ali a embriagar-se e a pedir moedas aos que passavam. Três dias depois já lhe tinha aparecido um companheiro, em poucos dias mais outro, quatro meses depois eram tantos que numa tarde ela contou dez. Já a Guarda Municipal começou a ter ocupações ali, os transeuntes interpelados já começavam a se aborrecer. “Antes que o mal cresça corte a cabeça”, dizia o Vitor da Vila. E ali estava o mal crescido.

Assim acontece com bichos, pessoas, coisas, sentimentos, moléstias. O primeiro puxa os demais, está aí diante dos olhos de todos o exemplo da corrupção, mais contagiosa que a lepra. Um copo sujo na pia vira uma montanha de louças, ela que não era boba de deixar o primeiro. Um ressentimento, por pequeno que seja, torna-se uma coleção de rancores capaz de destruir uma alma, um vício nunca permanece só. Felizmente parece que a lei se aplica também a coisas boas. Dona Izabel arranjou duas galinhas para combater o mato que teimava em crescer no seu quintal, hoje tem trinta e cinco cabeças, Seu Libório começou a ensinar música a crianças carentes hoje tem um grupo de jovens o auxiliando no trabalho social. É isso aí.

Levantou-se pela manhã com a ideia ainda voejando. Ia por à parte uma nota de cem. Quem sabe!

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 25/05/2019
Reeditado em 22/03/2021
Código do texto: T6656051
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