Quem bate

Bateram na porta surdamente, mas foi tão baixo o volume da iniciativa que Eusébio não ouviu, ou, talvez, não tenha querido ouvir, o que faz muita diferença nestas paragens onde o vento assobia intermitente, o sol vai e vem e nem sabe direito se aquece ou se esfria. A verdade é que as portas deste estado de sitio parece não ter a menor serventia. Quem lhe põe a tranca é porque não deseja abri-la para quem quer que seja. E serve para tudo, noticia ruim, noticia boa, amigos, inimigos e o que mais venha incomodar. Ele tem esta visão neste momento urgente.

Eusébio tinha este norte em sua cabeça quando resolveu se retirar da vida de antanho e ao organizar a próxima parada jurou para si que sua porta não teria campainha e também haveria uma aldrava dos tempos antigos para que não permitisse a entrada de ninguém. Nem para seu socorro. Se por acaso suas janelas e tramelas não se abrissem como de costume a vizinhança teria por certo um bom motivo.

Ficou sentado por um tempo pensando se havia alguém em sua porta ou não, havia tirado o olho mágico justamente para poder se enganar e não conferir deixando desesperado a quem lhe procurava. Achava divertido dar as costas ao mundo, este mundo que tantas e tantas vezes lhe tirou o chão, lhe jogou bola nas costas, amesquinhou suas iniciativas e o mais que queira pensar de maltrato. Pois bem, ali estava ele, muito bem sentado com um sorriso de cantos nos lábios festejando sua vitória. Sobreviveu apesar.

Sem conseguir brecar, suas lembranças começaram a surgir uma a uma para tantas portas que escolheu abrir, desde sua infância. A bem da verdade Eusébio tinha certa fascinação pela composição magistral dos acessos aos lugares principalmente para entradas e saídas muito antigas, estas, em particular, lhe remetia a um passado tão remoto que talvez, pensava ele, nem era desta vida. Quanto mais antiga mais a imaginação dele se punha a trabalhar, não com ocorrências lúgubres como as de hoje pela manhã, mas como uma incursão para outro tempo onde as noticias tinham um andamento mais lento, mais ameno, mais alegre e de certo modo, menos efusivo. Havia, certamente, uma cerimonia no toc-toc de portas e, obviamente, atender a quem bate seguia o protocolo.

Na adolescência, a porta de duas folhas bem rustica que era entrada e saída da casa de sua velha tia que lhe abrigava enquanto estudava, tinha uma campainha com tilintar de buzina de bicicleta que causava a Eusébio certa euforia, porque mesmo tão jovem, as performances com som antigo lhe fascinava. Agora, pensando melhor, parece que ele, em sua pouca idade, sempre se deparou com portas velhas. Deve ser porque nasceu no tempo errado, veio moço para um tempo ancestral e deste jeito, por capricho do destino, em seu caminho só se postava ferragens com ar de antepassado.

Parecia que o tempo se escoara por entre seus dedos e a última lembrança que teve foi da emblemática abertura de toda a sua trajetória na terra: a porta da frente da sua casa de infância, que era exclusiva para visitas e seu acesso tinha tanto mistério que, enquanto criança, até medo lhe causava. O hall que seguia a passagem para o interior da morada era severo e a sala de visitas mais austera. Não se tinha permissão de ali entrar, era a sala de visitas. Na lembrança, apenas cumprimentos fúnebres aconteceram no local, pelo menos no imaginário de Eusébio. A vida da casa acontecia nos fundos, o restante era local sagrado. Para ele, era como um templo e gostava de ali se esconder afundado na poltrona com um livro no colo, deixando o murmúrio da casa vociferar atrás dele. Não piava e se divertia.

Anoiteceu e a luz da rua passeava suavemente, como uma vadia, entre os moveis e adornos da sala, respingando de prata a difusa silhueta de Eusébio que restava imóvel na poltrona, alheio a quem bate.