Conto das terças-feiras - Que rei sou eu?
Gilberto Carvalho Pereira, Fortaleza (CE), 21 de maio de 2019
Quando criança Haroldo gostava que sua mãe lhe contasse histórias de reis e príncipes. Quando aprendeu a ler, ele mesmo comprava livros contendo esse gênero de contos. Ao terminar de ler dizia sempre: um dia eu serei rei!
Filho de professora primária em escola pública e pai sargento da polícia militar, o menino teve educação escolar rígida, embora os exemplos morais familiares fossem sempre questionados. Os pais trabalhavam arduamente para sustentar uma família constituída do casal e mais seis filhos, aí incluído Haroldo. Seus questionamentos recaiam sempre sobre as necessidades da família, quase nunca satisfeitas. Apesar dos esforços dos pais, sempre faltava dinheiro para quase tudo. Moravam na periferia da cidade, em casa de programa social, encrustada em ambiente de aterro sanitário, de condição altamente insalubre. Dizia o pai para os filhos:
— É o que o nosso dinheiro pode pagar!
Havia também a questão de o pai ser policial, sempre correndo risco de morte, pois no bairro predominava uma facção muito perigosa, que via nele uma ameaça para o bando. Todo esse drama teve sempre como ator coadjuvante o menino, o adolescente em amadurecimento. A vontade de ser rei foi ficando escondida no recôndito de sua mente, ele crescia melancólico, taciturno. Sua dor e seu sofrimento pela subcondição na qual vivia eram sufocados. Os que não pertenciam à família diziam:
— Esse menino vai ficar louco!
Os pais, em afã constante por causa dos filhos e do trabalho não davam conta do desespero do jovem Haroldo, era preciso trazer dinheiro para casa para o sustento de todos. Depois do salário recebido vinham os pagamentos: água, luz, a venda onde obtinham os mantimentos, comprados com anotação pelo proprietário da biboca em caderneta, sempre com preço majorado, quase nada sobrava. E o que sobrava era usado para o pagamento do coletivo que os levava ao trabalho, do pão e do café para o desjejum, quando isso era possível.
Como desgraça pouca é bobagem, diz a expressão popular, durante uma ação de combate ao crime de tráfico de drogas, o sargento Hermínio, pai de Haroldo, foi seriamente ferido, vindo a falecer uma semana depois. Toda aquela confusão de internamento em hospital, perícia policial, velório, homenagem fúnebre com a salva de 21 tiros, deixou Haroldo mais sombrio. Depois da missa de sétimo dia, o rapaz saiu de casa com destino ignorado. Duas semanas depois ele foi preso pela polícia, por ter matado o chefe da quadrilha que assassinara seu pai. Dera-se início a sua transformação.
A primeira coisa que lhe veio à cabeça foi o velho desejo de ser rei. Estava ali a oportunidade, detentos o respeitavam, viam nele um líder, pois dera cabo a um chefão do tráfico e inimigo da facção que dominava o presídio onde agora era detento. Pouco a pouco ele foi se tornando dono do pedaço. Mandava até na autoridade mais alta do local, subornava agentes penitenciários, distribuía uma parte do arrecadado entre os presidiários mais chegados, formando, assim, um exército pronto a lhe dar proteção. Recebia e traficava droga entre os detentos, mandava assaltar casas lotéricas, roubar celulares que eram vendidos aos companheiros detidos. Montou um sistema parecido com um call center, para extorquir dinheiro de incautos, pelo telefone. Conseguiu fazer fortuna, tirou a família da periferia e mandou alojá-la numa mansão à beira-mar. Como sempre sonhara, ele se sentia um rei.
As coisas corriam às mil maravilhas, mas nesse meio, como tudo é passageiro, sempre tem o troco, alguém aparece para tomar o lugar do chefão, Haroldo teve o seu dia do “troco”. Alguém mais ambicioso do que ele, começou a futucar o dedo em seus negócios. O cara era bastante afoito, comprou o exército do desgastado meliante.
— Quem por uma oferta melhor não muda de emprego? Perguntava sempre o intrometido.
De conversa em conversa os números foram sendo alterados, embora sempre no mais sigilo absoluto. Dentro de três meses o exército de meliantes trocou de mão e Haroldo se viu abandonado. Tentou consertar as coisas, mas já era tarde. Prepotente, não percebeu que em negócios ilegais há sempre golpistas, perdeu a vez, foi defenestrado. Tentou fugir, mas foi alcançado por um policial que lhe desferiu três certeiros tiros, caindo morto, o pretenso rei, ali mesmo. Rei morto, rei posto!