A DOR DA FOME

CONDOÍDA

Dentro daquele lar, parecia reinar o caos: brinquedos, roupas e vasilhas sujas; encontravam-se espalhados por toda casa – que aliás, era uma casa de subúrbio, pequena para abrigar uma família de quatro pessoas: uma varanda, uma sala, uma minúscula cozinha e dois pequenos quartos. Diferenciava-a das outras algumas flores, entre elas um pé de lustrosa bonina que floria o ano todo, parecendo dar uma vida diferente (melhor) aos seus moradores. Era uma casa típica às outras do mesmo conjunto habitacional, desses construídos pelo governo e vendido a prestações – em vinte anos – à famílias de renda média/baixa.

Lá dentro a dona-de-casa encontrava-se apavorada: já servira o almoço, arrumara seu filho de cinco anos e levara para a escolinha, amamentara seu bebê e colocara-o para dormir, terminara há pouco de lavar as fraldas do mesmo, colocara-as para secar num varal que existia no fundo do quintal e alimentara os cães.

Preparava-se então para dar uma certa ordem naquele caos aparente, tinha de ser rápida, porque o bebê não demoraria muito a acordar e lá pelas dezessete horas ainda teria de buscar o filho de cinco anos que deixara na escolinha .

Entre os lava, passa, arruma, cuida dos filhos e do esposo – como toda família de classe média/baixa ela ainda precisava preparar-se porque possuía jornada dupla de trabalho: ao anoitecer saía para trabalhar fora: era professora de segundo e terceiro graus.

Do alto de seus um metro e sessenta centímetros de estatura, franzina como poucas, aquela mulher mais parecia um gigante, desdobrava-se em mil para dar conta de todos os seus afazeres domésticos e profissionais.

Naquele dia em particular, encontrava-se particularmente mau-humorada: parecia que o serviço não rendia e que não conseguiria dar conta de tudo que ainda estava por fazer.

De repente... tocam a campanhinha no portão!

Extremamente irritada por desconfiar que do lado de fora do portão deveria estar mais uma daquelas inúmeras pessoas fortes, em pleno viço da mocidade, que em vez de trabalhar a fim de conseguir o próprio sustento, preferia bater de porta em porta pedindo (os eternos pedintes profissionais!).

Foi atender ao chamado, já com “quatro pedras na mão”, pronta para estourar com o ser que ousava atrasá-la ainda mais: aquela pessoa ouviria poucas e boas verdades: ah! Ouviria sim!

Abriu o portão e...

Deparou-se com um jovem muito magro- dava para contar as costelas dele - camisa jogada aos ombros. Cabelos lisos finos e despenteados, uma velha calça jeans e um par de tênis que parecia nunca ter sido lavado.

- o que quer? – pergunta a mulher mau-humorada.

- Dona! – responde o jovem – a senhora teria aí um quintal para capinar, plantas para podar ou qualquer outro trabalho que pudesse me oferecer em troca de um prato de comida?

Só então ela olhou-o de verdade! Jamais alguém tinha lhe oferecido trabalho pedindo simplesmente em troca um prato de comida!

Ela viu além da aparência: aquele jovem estava realmente precisando... e ela que nunca vira a dor da fome nos olhos de alguém, condoeu-se da forte dor da fome mirada naqueles olhos que não mendigavam: oferecia seu trabalho em troca de algo para comer!!!

- Bem - respondeu a mulher – não tenho tempo de fazer outro almoço agora e pouco sobrou do que fiz mais cedo, se você quiser, posso fritar-lhe dois ovos, cortar um tomate e esquentar-lhe o arroz e o feijão que sobrou.

- Nossa dona! isto seria o céu para mim neste momento!

- Tudo bem, aguarde alguns minutos aqui então.

Ela entrou, deixando o rapaz plantado no portão esperando; foi ao fogão e fez exatamente o prometido: dois ovos fritos, arroz, feijão, um tomate fatiado; encheu bem o prato e levou lá fora onde o jovem esperava...

Ele só não arrancou o prato das mãos da senhora, porque parecia ser um rapaz bem educado; mas... Quando ela o entregou a ele, o pobre-coitado sentou-se ali mesmo, no passeio, e comeu... comeu como quem saboreia um manjar dos Deuses!

Quase que limpou o prato de tanto que raspou até o último caroçinho de arroz.

Quando terminou, voltou-se à senhora e perguntou:

- A senhora já matou o que estava me matando, agora, o que eu posso fazer pela senhora?

- Você já fez meu filho – garantiu a mulher – você já fez!

Ele olhou-a confuso, como quem não entendeu bem o que ela queria dizer. Mesmo assim despediu-se:

- Obrigado dona! A senhora é uma santa! Que Deus proteja a senhora em tudo na vida!

Após estas enfáticas exclamações, despediu-se e foi embora.

A mulher, esquecida agora de tantos afazeres, continuou no portão, acompanhando o caminhar lento do jovem, meio encurvado como se carregasse o mundo às costas.

Até que ele dobrou a esquina sumindo do campo de visão dela.

Então, o bebê acordou e chorou tirando-a daquele transe...

Imaculada Catarina

KYRIADALUA
Enviado por KYRIADALUA em 23/09/2007
Código do texto: T665014
Copyright © 2007. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.