Beethoven e As Mentiras de Aluguel

Será que a vida só anda quando existe mentira envolvida?

A minha ja andou tanto no passado que eu chamava ela de Usain Bolt.

Mas não que eu tenha mentido tanto. Acho que, boa parte foi de quando mentiam pra mim.

No momento, eu poderia chamar a minha vida de Schumacher, mas eu nem sou tão fã assim de Fórmula 1. Mamonas. Eu chamaria a minha vida de Mamonas no momento. Tudo bem que não andam por estarem mortos, mas é que assim como na minha vida, os amigos todos... Foram cada um prum lado. Pedaço por pedaço.

Ao menos ainda tenho a música.

Seria trágico se eu perdesse a audição.

Já mencionei que uma vez por ano eu fico duas semanas sem ouvir absolutamente nada de um dos ouvidos?

É...

Devo isso a uma boa mentira que me contaram. Uma das grandes.

Numa madrugada de Abril quando nós discutíamos.

Já fazia quase dois meses que eu tinha descoberto a grande mentira, o grande segredo. A pessoa escondeu por dois anos. Eu desconfiei por dois anos. Mas o que é que podemos fazer só com desconfianças?

Eu perdoei. Mas, a confiança nunca voltou, mesmo gostando, mesmo querendo estar ali, com a pessoa. É como esperar que uma borboleta volte a ser casulo, só porque você acha mais confortável, bonito e seguro.

Discutíamos no quarto. Eu saí do quarto por 40 segundos e quando voltei, a pessoa estava com metade do corpo deitado sobre a cama, mas com as pernas caídas. Na mão direita sobre a cabeça, uma cartela de remédios e próximo á barriga, dois ou três tubos de pílulas enormes e outras três cartelas de remédios jogadados sobre a cama, na frente da barriga. A mão esquerda pendia na cama, porém, fechada, quase espremida.

-Pára com isso, eu sei que você não fez nada. Vai, fala comigo, logo. - Ainda de pé, tentei convencer a pessoa de que o teatro já não ajudaria.

Não, não é ser alguém insensível.

Eu sabia que a pessoa não faria isso.

Além de, antes de falar qualquer coisa, percebi os seus sinais e respiração. Tentei abrir um de seus olhos, mas forçava para que eu não conseguisse.

Era madrugada e fazia a noite mais silenciosa da qual já fiz parte. Sempre fomos discretos. Até para discutir, então, o silêncio seguia mesmo após discutirmos.

Ter discrição quanto ao que fazia era o que aquela pessoa mais aprendeu na vida. Mas eu, tão discreto quanto, mais observava do que falava depois de um tempo e assim, descobri.

RUA AUGUSTA - 791 - São Paulo.

Eu me sentei na cama, no espaço entre os seus joelhos e a barriga. Ela continuava a encenação. Em silêncio. Eu observava o chão. Em silêncio.

Como qualquer casal clichê, eu sempre gostei de ver aquela pessoa dormindo. Só observar a respiração quando eu acordava antes já era um motivo para estar presente neste mundo.

Daquela vez foi diferente. Eu olhei e só senti uma repulsa. Não necessariamente da pessoa. Eu acho que eu só ficava me perguntando como havíamos parado alí. O que a gente se torna depois de um tempo, agente nunca sabe. Mas, a mentira movimentou as nossas vidas e alí estávamos.

Ainda sentado e esperando o seu teatro ter fim, eu busquei os efeitos colaterais de um dos frascos de pílulas pelo celular. Tinha um nome estranho. As próprias pílulas eram estranhas. Arenosas e acinzentadas. Pareciam estar mofadas até.

Numa lida rápida na bula, bati o olho em "SURDEZ MOMENTÂNEA".

- Ok, é pra tomar, então vamos tomar.

Eu disse ja abrindo os demais frascos e cartelas e pegando entre três e quatro de cada. Ao todo, devia ter mais de doze na minha mão e assim que levei á boca, a pessoa despertou do falso sono e tentou me impedir segurando a mão. Sabe a cena do Thanos tentando estalar? Foi igual.

Eu forcei e no mínimo 5 eu engoli.

Eu não fazia idéia do que eram aqueles remédios, só sabia que um deles poderia causar surdez. Momentânea.

-Pára, pára com isso, não engole, cospe, vem, vem, tenta vomitar aqui - A pessoa me disse enquanto me puxava com certo desespero para a pia da lavanderia. Aquilo não devia ser um bom sinal.

Sem sucesso.

Sentamos na cama. Choramos. Em cinco minutos eu comecei a sentir o meu corpo mole e o maior sono do mundo. Aos poucos, tudo foi esquecido, a paz foi percebida e parecíamos estar bem de novo. Mas aquilo foi sumindo conforme a sua voz foi ficando distante e eu fechei os meus olhos. Se algum daqueles remédios era para insônia eu não sei, mas funcionou que foi uma beleza. Adormeci.

Eu não faço idéia de quanto tempo se passou.

De repente, a maior dor que eu já senti na vida, se acumulava apenas em um dos ouvidos. Eu despertei, mas não conseguia acordar. Era uma dor horrível. Eu não conseguia mover nada no meu corpo. Era como ter uma nota extremamente aguda nos tímpanos. Eu me sentia espremendo os olhos, mas não consegui abrir eles. Eu me senti abrindo a boca e tentando expressar algum sinal de dor. Era horrível, eu não conseguia. Eu tentei gritar e não saía som algum.

Após talvez dois minutos naquele pesadelo, a minha voz voltou já fraca, como se eu estivesse gritando há muito tempo. Eu abri os olhos finalmente e estava encarando a parede, deitado na cama.

Senti o meu ombro ser puxado e o meu corpo girar.

A pessoa me perguntou o que houve, eu avisei sobre a dor no ouvido, que já havia parado e perguntei se não me ouviu gritar antes. Disse que não, que antes eu estava dormindo profundamente. Eu me perguntei se tudo aquilo foi um sonho e logo obtive a resposta.

A pessoa me perguntou algo eu pedi pra que falasse mais alto. Eu estava perdendo a audição. Aquilo aconteceu.

Agora, todos os anos, entre Fevereiro e Abril, por algumas semanas a minha audição parcial some.

Talvez, seja a única coisa recorrente na minha vida, agora que não me cerco de mentiras.

Entrecidades Kintsugi
Enviado por Entrecidades Kintsugi em 16/05/2019
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