MISFIT
*MISFIT: numa tradução lata do termo, significa algo ou alguém que não "se encaixa", que "não pertence", inadequado, inadaptado, desajustado...
Apesar da riqueza da língua portuguesa, sinto que a expressão na língua inglesa é mais definidora da imagem que pretendi nesta pequena história.
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"BOB - MISFIT FLASHES"
1 - PRÓLOGO
Bob estava, como milhões de outros, desempregado...
Ao contrário de milhões de outros, saberia trabalhar no que quer que fosse, e tinha trabalhado nos mais diversos ofícios e espaços, abandonando-os de seguida, por se sentir insatisfeito!
Bob estava, como milhões de outros, sozinho...
Ao contrário de milhões de outros, sempre havia possuído suficiente charme, mistério e dons de palavra para ir tendo alguém junto a si, mas afastava-se e afastava de si todos os outros quase de seguida, por se sentir insatisfeito!
Bob tinha o conhecimento e a habilidade, mas soçobrava na falta de vontade.
Bob buscava aquela intangível sensação de: "... é isto que quero, é isto que sou..."
2 – BOM DIA, BOB!
Um rosto estranho olhava Bob por entre o vapor, um rosto baço e cansado, difuso na penumbra…
Tomando consciência de si mesmo, Bob reconhece afinal esse rosto, e juntando suas mãos em forma de concha lançou-lhe água tépida.
Até a si mesmo lhe parecia estranho o seu reflexo no espelho…
Em seu reflexo, parecia senhor em si de uma falsa calma, de olhar vazio, ausente, quase divino, que contrastava com os seus tremores, a barba de três dias e os cabelos em desalinho.
Era uma visão que, de já tanto ser vista, se tornara gasta, decadente, e cada vez mais estranha a si mesmo e ao Bob que Bob conhecera…
Deitando de soslaio um último olhar ao espelho, voltando-lhe as suas costas, Bob endireitou o seu corpo partindo para mais uma batalha em sua guerra com o Mundo.
O Mundo dos Outros!
3 – BOB E OS OUTROS!
- “ Bom dia, Bob! ”
- “ Bom dia, Sr. Tomás! ”
A voz de Bob ecoou no elevador, demasiadamente viva e alegre, numa alegria claramente falsa. Não que o Sr. Tomás o parecesse entender, no entanto.
- “ E um belo dia, de verdade, Sr. Tomás! Como têm passado o senhor e a sua esposa? ”
- “ Vamos andando, e a patroa agora tem andado melhor, agora que a mãe dela voltou a viver connosco. Agora sou eu que sinto falta de ar, e não a patroa… Ah! Ah! Ah! “
Bob soltou também uma gargalhada, mas tão curta e seca que mais pareceu que tossia.
O suor começava a alagar o seu corpo e a náusea tomava conta de si, enquanto representava o papel de vizinho prestável e simpático.
E o elevador que parecia não chegar ao fim do destino…
Até que finalmente as portas se abriram e uma lufada de ar o afagou, mas o ar não era fresco, era tão bafiento como o que envolvera na descida, como tudo o que o parecia envolver, sempre pastoso, bafiento, nauseabundo…
O Sr. Tomás saiu apressado.
- “ Bem, tenho de ir trabalhar, a nação depende de mim! Ah! Ah! Ah “
Bob respondeu com um pálido sorriso, enquanto olhava aquele homem que saía do edifício, olhando-o com um misto de admiração, revolta e tristeza.
Bob viu as fraquezas da sua força e a força das suas fraquezas, Bob foi ele próprio e foi Tomás, sentindo a raiva, a angústia e a passividade de ambos.
Bob olhou aquele homem que, detestando o que fazia, trabalhando em demasia, sendo mal remunerado, suportava há já vinte anos as mesmas rotinas em nome de coisas que eram para Bob noções e imagens difusas, conceitos já tão vagos, insondáveis, incompreensíveis e misteriosos, como “estabilidade”, “segurança”, “responsabilidade” ou “futuro”…
Bob sentiu uma vez mais de modo vivo a sua dor, como chamas que o consumiam em vida, que o faziam crepitar em lume brando, sentiu uma vez mais a loucura e o desespero.
De si? Dos Outros?
Bob respirou fundo.
Sentiu como tudo era vago, brutal, louco, e, afogando seu pranto num sótão da sua alma, lançou-se na cinzenta penumbra da matinal neblina.
4 – EPÍLOGO
Sem se dar conta de para onde os seus passos o foram levando, vagueando à deriva por entre vagas de gente nesse mar revolto do quotidiano, achou-se, de novo, ao balcão de um bar, pedindo mais um “duplo” para quebrar o jejum…
Pegou no copo, olhou-o sorrindo, mirou todos os contornos e as diversas nuances do brilho do líquido na semi obscuridade do bar e, lentamente, com um prazer de loucura feito, derramou-o sobre o balcão enquanto o seu riso se fundia com suas lágrimas e um par de braços, como tenazes, o arrastavam para fora, para a luz, para junto da multidão que com ele mantinha uma mútua relação de pena e desprezo!
A chuva caía e Bob, joelhos no solo, deixava a chuva ensopar seu corpo, inundar sua alma, e nem os relâmpagos o importavam, já nem os escutava, já nada importava, já nada tinha mais qualquer sentido…
Bob era um MISFIT!