A grama do vizinho
 


Valter era funcionário público, apelidado de “barriga branca”  pelos colegas. A mulher era quem mandava. Nunca tinha coragem de contrariá-la. Logo que tentava dá um grito um pouco mais alto, vinha uma chantagem emocional e ele recuava. Assim, levava a vida, sem muitas emoções ou atropelos.

 
Zuleica sabia da vida de todo mundo do bairro. Culpa da ociocidade da mente por viver dentro de casa. Assim que ele chegava do trabalho, já começava com suas histórias. A bola da vez era o Wilson, vizinho da casa ao lado, vivia falando que ele um homem muito bom para a esposa, pois brincava com os filhos; viajavam de férias para fora do país, além, claro, de ganhar muito dinheiro.  Que nunca tinha visto um homem demonstrar tanto amor pela família.


- Já viu  o Facebook  dele? - É  cheio de declarações de amor. Você nunca fez uma para mim!  Dizia Zuleica para Valter. Esquecendo-se que ele não tinha Facebook porque ela fez um barraco por causa de ciúmes.
 
Mas, o destino parece ser invejoso e não pode vê um casal feliz que logo trata de estragar tudo. Um mês depois que os vizinhos deram uma festa espetacular em comemoração ao aniversário do filho caçula, a esposa de Wilson morreu vítima de  um aneurisma. Algo inesperado.

 
No velório, Wilson pedia a morte, parecia até  que tinha enlouquecido o pobre viúvo.


Zuleica aproveitou para dar lição de moral no marido.

- Tá vendo o comportamento do Wilson? Isso sim é amor. Ele quer até morrer para ir ao  encontro da esposa. Oh, destino cruel desse homem! Coitado! Vamos ajudá-lo a passar por esse momento difícil. Você vai convidá-lo para almoçar conosco toda semana. Que Deus tenha piedade dele! Pobre homem! Não merecia passar por isso.
 
 
Por duas semanas Valter não viu o vizinho, pois estava muito ocupado no trabalho. Wilson também andava sumido cuidando dos papéis da esposa. Parece  que morrer não é fácil. Por outro lado, parece que a falecida deixou a família muito bem. Comentava-se que ele iria receber uma bolada, pois ela era de uma família muito rica e segundo as más línguas (sua esposa) tudo era dela.


 
Valter queria praticar pedal, porém, Zuleica não o deixava comprar uma bicicleta decente, pois achava um desperdício de dinheiro. Wilson querendo alguém para pedalar com ele,  achou por bem dar uma de presente para Valter, que adorou o presente, apesar de ser usada era perfeita.

 
Estava adorando o pedal, deveria ter comprado uma bicicleta antes, mesmo com as brigas da esposa. Mas, teriam que trocar o carro e dessa vez não iria ceder, compraria o carro que quisesse.


Assim, sem Zuleica saber, comprou um carro importado ( um SUV), embora usado, era muito conservado. Além disso, o preço estava bom e era da cor que sempre quis. Chegou a casa com o carro. A esposa só murmurou que se o carro não prestasse seria culpa  dele e que a cor era horrível. 
 
Duas semanas após a morte da esposa de Wilson, ele convidou Valter para um pedal.


Ao contrário do esperado, o viúvo estava muito bem. Contou a Valter que tinha herdado muitos bens da falecida e que receberia  uma pensão vitalícia paga pelas empresas da família da falecida. Contou-lhe que estava saindo com uma garota linda! Que  estavam indo para o motel mais caro da cidade e entrou em detalhes íntimos que deixaram Valter  boquiaberto de inveja.

 
No semana seguinte, Wilson novamente convidou Valter para um passeio, mas Zuleika começou logo uma briga.


- Você não vai. Esse homem não é boa companhia. A esposa mal morreu e já tem fila de mulher. Todo dia tem uma mulher nessa casa. Com menos de um mês ele já estava  dando festas. É um despudorado.

A rotina na casa do vizinho tinha mudado. Todos os dias tinha festa  e o entre e sai de mulheres era constante.

Zuleica aproveitava para alertar o marido que se ela morresse, ele nem pensasse em arranjar outra. Que queria uma “vacatio legis” de  dois anos, no mínimo.

- Sim Zuleica, não é se você morrer... você vai morrer! Todos vão, mas eu vou primeiro do tanto que você me irrita!
 
Valter via em Wilson tudo que ele não era. O cara estava vivendo intensamente. Cada dia uma mulher diferente.  Era um vidão! Aquilo sim era vida.


 
Como teria uma festa grande na casa de Wilson, Zuleica decidiu que iriam para o fim de semana  num sitio  para não presenciar aquele desrespeito às famílias de bem.


Durante o percurso, Zuleica estava radiante, sentia-se feliz. Pensava que Valter era um homem bom, pois apesar de ser sem iniciativa, era bom pai e companheiro.  Estava gentil demais durante o trajeto. O marido sabia que muita gentileza era sinal de golpe depois.

E, mais uma vez, o destino conspira contra os casais felizes. Quando fizeram uma curva para se desviar de um caminhão, Valter perdeu o controle do carro e antes de perder a consciência, ainda conseguiu vê o corpo de sua esposa ser jogado para fora do carro quando a porta se abriu e o cinto se soltou.

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Dois dias depois acordou numa cama de hospital.  Quando viu os médicos fazendo rodeios, já imaginou o pior.

 - Zuleica morreu? Perguntou Valter.


Os médicos disseram-lhe que sua esposa   por sorte não tinha morrido, mas que iria  ficar em cadeira de rodas por um bom tempo, ou até mesmo para sempre, a depender da evolução.

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Dias depois, Zuleica volta para casa, que fora toda adaptada para ela. Estava furiosa, pois a seguradora alegou que naquele modelo de carro já tinha sido detectado esse tipo de defeito e todos os compradores foram chamados para fazer o “Recall”, que seu marido deveria ter feito e se recusaram a pagar a indenização do seguro. Valter, por outro lado, jurava que não sabia, pois  se soubesse do defeito nem tinha comprado.  
 
Se a vida de Valter era um inferno, com certeza o inferno tem alçapão, pois piorou muito. Tinha que cuidar da esposa reclamando o dia todo, culpando-o por ser burro e  não prestar atenção em nada.

 
Sua única alegria era bisbilhotar a vida do vizinho. Assim, toda noite  ficava no terraço do quarto vendo as noitadas do Wilson que parecia até gostar que o vissem, pois deixava a porta do quarto semiaberta e dava para ver muita coisa... muita mesmo! Enquanto observava o vizinho,  pensava o quanto era sem sorte, pois se o impacto tivesse sido um pouco mais forte, só um pouquinho... ele estaria tendo aquele vidão!


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Três meses antes do acidente.

 
- O senhor tem certeza que vai levar esse carro?  Ele tem um problema na porta que abre sozinha e o cinto do lado do passageiro não suporta impacto. Tem que ser trocado assim que o senhor sair daqui.


- Vou levar sim. Não se preocupe que vou trocar.
- Obrigado pela informação!



* Vacatio legis - Prazo legal para uma lei entrar em vigor. Tempo de espera. 




Imagem do Google.