A beleza sob a redoma
“Não ter nascido bicho é uma minha secreta nostalgia”
Clarice Lispector
Foi Ellen quem primeiro viu o monte de penas coloridas amontoadas ao lado da Br 463. Parecia uma poça de tintas misturadas por um artista. É incrível como ela se emociona fácil. Apontou o dedo comprido e com as costas da mão enxugou uma lágrima.
-Nós matamos o galo, Sônia, com a nossa atitude!
Olhando para o banco de trás Sônia meneava a cabeça, em discordância. A seguir, cutucou Roberto e, arqueando as sobrancelhas, suspirou cansada. Roberto, sorrindo, trocou de marchas e acelerou. Olhando brevemente pelo espelho me perguntou:
-O galo era um galã, não era?
Eu não achei graça nenhuma. Estava exausto, sonolento e com a bexiga cheia. Funguei, me remexi no banco e olhei para fora observando os batalhões de soja de um lado e outro da pista. No horizonte, acima das plantações, um avião monomotor pulverizava inseticidas sobre a lavoura. Destravando o cinto eu pedi:
-Pare em alguma lanchonete onde não tenha galinheiro.
Ellen virou o rosto e sua respiração embaçou o vidro da janela. A sonolência invadiu o interior do carro. Sônia, preocupada com o marido para que ele não cochilasse, falava a todo instante, procurava estações de rádio, batia palmas. Tinha, agora, uma dupla missão: conversar com o Roberto e consolar a Ellen.
-Não se preocupe! Aquele galo ia ter que morrer um dia...
Ellen balançou a cabeça e recostou-se ao meu ombro. Estava se sentindo mal e desamparada. Conhecendo-a como eu a conhecia eu sei que ela ficou chocada. Ellen é vegetariana e tem pelos animais uma amizade mais que humana. Tinha ficado apaixonada por aquele galo acorrentado. Realmente era um belo galo vermelho-ocre alaranjado. Era um pavão de pobre. Eu estava pensando nisso quando Roberto parou o carro.
-Cinco minutos, senhoras!!
Todos desceram menos Ellen que, propositalmente, conferia os aplicativos do celular. Pedi com os olhos que ela descesse. Seria bom esticar as pernas e aspirar o ar livre da fronteira. Às vezes, uma boa inspirada de ar natural renova todos os nossos pensamentos. Ellen, no entanto, estava irredutível e amuada. Eu amuei também e saí para aliviar a bexiga. Na volta encostei-me ao carro e fiquei fumando enquanto Roberto e Sônia voltavam de mãos dadas. Entramos no carro e Sônia retomou sua missão de animadora de auditório de veículo.
-Toma, trouxe água pra todo mundo.
Peguei as duas garrafinhas e entreguei uma para Ellen que, ajeitando os cabelos, forçou um sorriso. Depois abaixou o vidro e olhou para fora. Em seguida tomou um gole de água e um pouco de coragem e disse:
-Acho que aquele homem e a família comerão o galo.
Nada mais disse até o fim da viagem. Fez de conta que dormia. Quando chegamos ela se despediu de Sônia e Roberto. Agradecemos a boa vontade deles por terem ido conosco sacolar no Paraguai. Eles eram boa companhia, pois não bebiam ao volante e gostavam de dirigir. Roberto passou para o banco de trás e eu deixei a Ellen em casa com nossas sacolas. Dirigi cinco quadras até a casa deles. Ao se despedir Sônia me pediu:
-Tenha paciência com ela, tá?
Voltei dirigindo devagar, pensando no galo morto à margem da rodovia. Ele estava inteiro e, se não me engano, não havia sinais de sangue ou penas na pista ou próximo dela. Lembrei-me do que o dono da lanchonete de beira de estrada havia dito:
-Ultimamente tá morrendo tudo.
Tinha sido uma resposta para Sônia e Ellen que - enquanto Roberto e eu voltávamos do banheiro - tinham visto o Rhode Island amarrado com uma correntinha e se aproximaram por curiosidade e compaixão, respectivamente. O galo assustado, com o alvoroço de Sônia e a mão de Ellen, deu um pulo e batendo as asas quebrou a corrente. Saiu pulando e esvoaçando em direção à pista àquela hora deserta. O homem olhava coçando as têmporas desoladamente.
-Lá vai o galito das crianças...
Ellen ficou mais triste do que assustada ao saber que o galo era de estimação. Insistiu para que Roberto e eu corrêssemos atrás do bicho. Nós insistimos em pagar por ele, mas o dono da lanchonete não aceitou. E olhando para as mulheres disse:
-O galito volta antes das crianças voltar da escola.
Pedimos desculpas novamente, entramos no carro e seguimos até Pedro Juan Caballero. Exatamente seis horas depois voltávamos. Passamos devagar de frente à lanchonete de beira de estrada. Roberto debochadamente ainda brincou:
-Que tal um galeto?
Ninguém riu. No balcão avistamos o homem atendendo a um cliente. Do lado de fora, exposta ao sol da tarde, a corrente abandonada. Nem sinal do galo. Ele estava, como já sabemos, duzentos metros adiante inteiro e morto. Provavelmente com o papo cheio de soja.
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