CANÇÃO DE OUTONO

Era como se fosse um filme…as imagens passavam fugazes.Uma vida a dois.Uma montanha, a russa com altos e picos vertiginosos e precipícios, quedas e deslizes, quase o fim…e, depois, por milagre, uma nova e vagarosa subida.

“Que bom, hoje é feriado”pensava ele, ainda deitado, meio enterrado em vale de lençois.

Conheciam-se desde os vinte anos, tinham-se casado e naquela manhã já ambos se reconheciam como uma dupla que atravessara muitos invernos juntos.

Ela entrou no quarto fresca e perfumada:

- Vou pôr mais uns fios para ver se fico sem estas planguenhas no pescoço.

- Que tudo corra bem.

Não era uma plástica a sério mas uma espécie de corte e costura com agulha e dedal.

Ela atirou-lhe um beijo e saiu.

Ele encolheu os ombros consciente daquela espécie de doce intimidade!

E então resolveu levantar-se, vestir o robe e passar pela cozinha.Mas não lhe apeteceu comer nada.Quer dizer, acendeu um cigarro e serviu-se de um cálice.Ligou a aparelhagem, premiu o leitor. Yves Montand do além túmulo começou a entoar “Les feuilles mortes” e num relâmpago perpassaram pelo seu espírito as memórias dos filmes e dos livros e as cenas que ambos tinham vivido juntos, anos e anos, mais de três décadas.

Que estranha a sua história.Que amor maduro, despenteado e difícil por vezes de entender… nem ele entendia, por vezes.

Um início igual a milhões mas depois as experiências singulares e a luta pela sobrevivência.A bebida aqueceu-o, descontraiu-o e fez efeito.

Ele recordou.Os Outonos na Arte.Impressionistas, amarelos,verdes, vermelhos, folhas desbotadas,num ondular de vento. Ingrid Bergman e Liv Ullmann, personagens, mãe e filha, sentadas a discutir naquele filme de Ingmar Bergman “Sonata de Outono” e logo, logo o vislumbre da balada do A.J.Cronin.

As crises, os outros, as pequenas grandes facadas, tristes, prazeres breves ou quando se pulou a cerca ou se fez uma escapada fútil e o regresso atormentado e desejado aos braços um do outro, ao conforto conhecido e reconhecido.Misérias de Camões.

Resolveu preguiçar, não escutar e alhear-se.Da televisão saíam impropérios, breaking news, conflitos, ameaças e figurões assustadores.O Mundo podia acabar no dia seguinte.

Ela voltou cheia de pontos atrás das orelhas, muito repuxada mas estupidamente. feliz.

- Desapareceram as rugas e os refegos.

- Foste passada a ferro?

- Vou pôr gelo.

- Já é tarde.É melhor almoçarmos em casa.

-Ah sim e esta porcaria doi-me.

Ele improvisou uma refeição regada com um bom vinho.

- Hoje não saio de casa.Fico com o gato.

O gato acusou a menção e veio roçar-se entre as pernas dos donos.Soltou um miado sustenido, muito agudo.

- Terá fome?

A energia dela cansava-o.

- Às três tenho Reiki.Vou fazer uma regressão às minhas vidas passadas.

Ele pensou se ela acreditaria mesmo nisso ou estaria simplesmente a tentar convencer-se e se não era demais para um só dia?Chouriço enguitado e acrobacia mental mas calou-se, prudentemente.

Dirigiu-se ao computador e ligou-se às redes sociais.

Ela veio abraçar-se por trás e perguntou:

-Que estás a fazer?

-Nem eu sei – e, de certa forma, era verdade.

Ela voltou a sair.Anoiteceu.Ele permaneceu.Na mais absoluta inactividade, incrível pasmaceira ou dolce fare niente.Absorto.Longe.Naquele dia não lhe apetecia sair nem fazer nada.A nostalgia instalava-se como sempre, muito seráfica, mesmo á frente, presa no seu espírito.

Ele saboreou a solidão e o frio que começava a sentir-se e ligou o fogão da sala. Esperou.

Ela regressou ansiosa por chegar ao ninho.Ele sorriu e acolheu-a no colo.Aquela grande mulher criança, sua mulher, desde tempos imemoriais, desde quase a meninice.

Já não havia sexo há muitos anos.Mas havia definitivamente Amor.Abnegação, compreensão, tolerância, aceitação, afecto incondicional e eterna partilha.

Tomaram uma nova refeição muito frugal, um jantar ligeiro e leve e estenderam-se cada um no seu sofá a ler.Sorriram um para o outro.Cúmplices.Companheiros para sempre.

Ela adormeceu e ele levou-a para o quarto, deitou-a na grande cama e aconchegou-lhe bem a roupa.

À meia noite, sentiu um estrépito de energia, um surto, uma vontade louca e abriu a torneira da banheira para tomar um duche.Talvez fosse escrever pela noite fora, talvez fosse olhar as estrelas pela janela.Sonhar acordado.Sabia bem.

José Manuel Serradas
Enviado por José Manuel Serradas em 05/05/2019
Código do texto: T6639413
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