O Pastor
Aquele culto tinha sido um porre, porém havia gente demais. Durante a madrugada, quando juntava os extratos das máquinas e o dinheiro recolhido do dízimo para fazer as contas, teria um trabalho imenso. Sempre fazia o cálculo quatro vezes - a ver se não estava perdendo e preocupava-se em pagar o tecladista na quantia acertada.
O cabelo carapinha estava oleoso. As linhas faciais mostravam-lhe um cansaço inumano. Estava disposto a fazer algo diferente naquela noite. Pediu para que a esposa fosse embora - mais tarde iria. Abraçou alguns fiéis - homens engravatados e mulheres de saia - e despediu-se deles. Pediu também à esposa para que fosse à casa, pois resolvera que, naquele dia, faria as contas na igreja mesmo.
- Qualquer coisa tomo um táxi - murmurou o pastor Francisco Almeida a ela.
- Aqui é bastante perigoso de noite - redarguiu a mulher. - Tome cuidado, Francisco! Lembra que o Pr. Silva da rua de cima levou onze tiros?
- Deus sabe o que faz - replicou ele, sardônico.
Com a ausência de todos no recinto, começou pastor Chiquinho - como era alcunhado pelos frequentadores da igreja - a observar cada canto daquela congregação que ele mesmo construiu. Com o dinheiro que juntava ao sobrar no fim do mês enquanto trabalhava como metalúrgico em uma grande fábrica na região do ABC, conseguiu construir sua própria casa e a igreja - que também contava com a ajuda de alguns vizinhos e familiares.
Anos depois, com o sucesso de seus cultos, Pr. Chiquinho mudou de bairro. Saiu da periferia e foi morar acercado do Centro. Mas nem por isso abandonou seus fiéis. Continuou com o que dizia ser sua “missão espiritual”.
Naquela noite, contudo, ele estava mental e fisicamente cansado. Havia errado duas vezes as palavras de Lucas, 15:11-32, sobre o filho pródigos. Quantas vezes já não havia lido aquilo? Porém, o que o estava incomodando era a insigne presença de Lucinha - a mulher do padeiro. Pizzaiolo, na verdade. Porém, depois que Augusto entrou na padaria do bairro, passou a fazer pães.
Mas o que importava era a presença de Lucinha: ela ficava ali, com aquelas pernas torneadas e cruzadas, a segurar sua Bíblia Sagrada com fé. Algum tempo antes, em uma reunião consigo, o pastor havia notado certo interesse daquela lasciva mulher para consigo. Por essa razão, não resistiu ao charme feminino e animalesco de Lucinha e os dois entregaram-se ao pecado da carne dentro da congregação.
Estava a sentir culpa? Poderia convocar a presença dessa mulher e dizê-la para que nunca mais pusesse seus pés ali dentro. E se ela contasse o caso? E se ela tivesse gravado? Deixaria tudo como estava: tinha de conter-se ao vê-la. Era contemplá-la e dizer-lhe as devidas boas noites e subir no púlpito e começar a fazer a pregação. Simples. Não a veria mais, pois Jesus dava-lhe as palavras necessárias para preencher a alma daquelas pessoas necessitadas.
Ele não conseguiu fazer conta nenhuma. Abriu a última gaveta de sua mesa de escritório e notou que a pequena garrafa de Jack Daniels estava vazia. Esgotada. Nem uma gota! Via-se, pela transparência da garrafa, sua mão negra envolver toda a garrafa. Bufou. Tinha de espairecer de alguma forma. Pó não, pois aquela merda vicia. Não queria perder tudo e virar andarilho na República.
Levantou-se e saiu do escritório - a apagar todas as luzes. Assim, apagou toda a igreja. Saiu pela portinhola lateral - pois a abertura principal já havia sido fechada. A rua estava bastante escura porque haviam apenas três postes funcionando. Havia ninguém ao redor. Apenas uma música alta e risadas fortes femininas e masculinas. Seguiu o caminho da música e percebeu que esta era um forró. Havia um bar na lateral à esquina da rua de sua igreja. Nunca o tinha visto.
O pastor entrou ali - sem notar que alguns clientes estavam engravatados, com Bíblia debaixo do braço, mas munidos de seus copos de cachaça. Conhecia alguns dos frequentadores, mas não importou-se em fazer o que queria. Chegou ao balcão e perguntou:
- Tem uísque?
- Só vou ter Old Eight... - respondeu o provável dono do bar - que comia ovos de codorna conservados em vinagre.
- Pode ser - replicou o pastor, a dar de ombros.
Depois de alguns minutos, começou uma confusão dentro do bar. Um homem havia puxado uma faca porque outros dois não paravam de olhar para sua namorada. O valentão começou a desferir facadas no ar para ameaçar os outros dois homens. Aquele forte sotaque nordestino era bastante intimidador, porém não ao pastor.
Levantou-se e tentou acalmar o rapaz com algumas palavras. Em sua cólera, o outro nem ouvia. Foi quando pr. Chiquinho aproximou-se e tentou tirar a faca do homem. Este último esquivou-se e esfaqueou a mão do pastor. Uma gritaria. Confusão. Arrastar de mesas e cadeiras. Enquanto Chiquinho vislumbrava sua mão com horror, com a visão bastante turva do terceiro uísque barato, o outro desferiu-lhe uma facada no peito e, quando o religioso caiu, fora alvejado também nas costas.
Francisco Almeida, o pr. Chiquinho, morrera ali mesmo: sem dignidade, embriagado, por conta de uma briga de bar que virou crime.