Lutar

Lutar

Lutar. Lutar. Lutar.

E quando pensar que já acabou, lutar mais um pouco.

Será esta a definição de existir? Passar a vida inteira brigando mesmo sabendo que não sairá vencedor?

A corretora relê minha papelada. Na verdade, um conjunto de documentos, extrato bancário,comprovante de endereço.

Agora está em silêncio, seu sorriso aberto desapareceu assim que começou a avaliar minhas condições.Às vezes interrompe o que está fazendo, passa as mãos bem cuidadas no rosto maquiado. Bate os dedos compridos , seguidas vezes no canto da mesa. Morde a tampa da caneta.

Para ser sincera, acho que ela torce para que dê certo. Acho de verdade que seu único interesse não é a comissão de cinco, dez, quinze por cento. Talvez, ela saiba que seu trabalho pode concretizar ou destruir os sonhos de alguém. Talvez, eu seja apenas uma pessoa que acredita em milagres.

Como não acreditar. Acordar todos os dias não é, de certa forma, um milagre: Quanta coisa pode acontecer durante a noite? Herculano sofreu um infarto,uma vizinha bateu a cabeça no piso do banheiro no meio da madrugada, a pequena Lara foi picada por um escorpião enquanto dormia.

Aguardo. Meus olhos correm pela sala pequena e nada acolhedora. Quem precisa se preocupar com decoração quando detém tanto poder? Mesa, cadeira,computador, um pequeno armário de ferro. Nas paredes, cartazes dos empreendimentos imobiliários espalhados pelas cidades da região. O luxo reservado a um potente ventilador de parede e uma cafeteira elétrica.

“Eu acredito em milagre”, digo a mim mesma quando a corretora se levanta para conversar sobre minha ficha com alguém.

É bem verdade que eu preferiria que aquilo que o ser humano pode resolver sozinho, não tivesse que ficar por conta da Providência divina ou de uma conspiração cósmica. Fazer o que se o mundo é assim?

Fazer o que se os mesmos que exploram meu trabalho, organizam cestas de natal para doar aos carentes? Fazer o que se aqueles que chamam a mim e aos meus de analfabeto continuarão negando escola de qualidade aos que vieram quando eu nem estiver mais por aqui?

Ela volta. O sorriso continua desaparecido. Tão jovem e já lidando com este mundo de contas, critérios;capaz de definir incluídos e excluídos. Mas como ela mesma disse, optou por esta profissão pelo retorno financeiro.

-Dona Nilsa, suas condições não estão muito favoráveis.

Esfreguei as mão por baixo da mesa, rezando para que ela não visse em meu rosto a frustração. Este gosto eu não daria para eles. Nem para o sistema bancário. Nem para meus patrões.

Lutar. Lutar. Lutar. Ainda que a vitória seja uma utopia.

-Mesmo assim, vamos enviar sua proposta e torcer para dar certo.

O milagre!

-Assine aqui, por favor.

Na despedida ela me disse palavras bonitas sobre sonhar, alcançar objetivos. Outro corretor se ajeitava na cadeira. Pronto para atender, mostrando o universo maravilhoso daqueles que possuem casa própria, segurança, lazer e depois , dizer com palavras abstratas que a renda da pessoa não se encaixa no projeto. Talvez ele ou ela nem assinassem a proposta.

-Tchau, dona Nilsa. Vai com Deus.

Lutar. Lutar. Lutar. Engolir o choro de desespero e humilhação. Vontade de ir com Deus mais cedo.

Lucia Rodrigues
Enviado por Lucia Rodrigues em 01/05/2019
Reeditado em 03/05/2019
Código do texto: T6636647
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