Vale o que custa?
“Talvez me espera à frente
Uma tarde à vontade
A beber na cidade
E morrerei contente”
Rimbaud
O belo vulto da mulher acenava para mim. Reduzi a marcha, pisei no freio e abri o mapa sobre o banco do carona. Olhando de soslaio pelo retrovisor avistei quando ela se aproximou. Era uma típica caipira com aquele vestido longo, florido e um chapeuzinho de palha no alto da cabeça. Ela chegou e pôs o antebraço na janela aberta.
-Está perdido, moço?
A pergunta, assim de imediato, junto com o perfume leve que emanava do corpo dela me deixou, por um momento, sem resposta. Mas, foi só um momento. Talvez, o único momento silente que eu teria nas próximas horas.
-Chácara Paraíso é aqui, não é?
A moça meneou a cabeça confirmando e, dando um passo atrás, abriu a porta do carro para mim. Só agora eu pude observá-la em toda sua completude: era baixinha, mas imponente. As sandálias amarradas à panturrilha ressaltavam os pés finos, curtos e ágeis, que caminharam em direção à porteira.
-Pode deixar aberta. Não temos mais gado.
Segui-a com as mãos no bolso. Ela caminhava à minha frente e num gesto, para mim inusitado, chutou um gato que cruzava o seu caminho. Virou-se na minha direção e, sorrindo com os dentes curtos, disse que foi sua ideia pôr a chácara à venda. Disse também que a mãe, já bastante idosa, não queria se mudar para a cidade.
-E são só vocês duas aqui?
Fez um gesto de mão que significa ah deixa pra lá e continuou a andar. Ajeitou o chapéu meio de lado e apontou para o rancho estático entre as mangueiras farfalhantes. Era de madeira, rústico, mas pintado de amarelo-sol nascendo. Lá, na ampla varanda, um ponto cinza numa cadeira de rodas.
-É a mamãe. Não dê ouvidos a ela.
A moça girou para um lado e mostrou-me o pomar. Foi apontando o dedo para as jabuticabeiras, as bananeiras, os mamoeiros, e um pé de ameixas que ficava entre as goiabeiras. Aproximou-se da árvore e recostando ao tronco falou que aquela era a preferida da mãe. Eu, olhando ao redor, arrisquei:
-Posso esperar vocês duas se acertarem. Há outras chácaras...
Eu disse isso no intuito de regatear, baratear o produto, não por gentileza. Ela, como se tivesse adivinhado meu pensamento, não demonstrou estar contrariada. Andou um pouco para o lado, rapidamente puxou duas mexericas que pendiam de um galho e jogou uma para mim. Eu a peguei em pleno voo.
-Vou vender esta chácara ou vou abandoná-la...
Ela descascava a fruta e lançava a casca no pasto ao lado. Virou de costas e contemplou as outras propriedades vizinhas a sua. Levou um gomo à boca, mastigou ruidosamente. Depois, encarando-me, cuspiu os caroços na grama. Levantou o indicador da mão direita e disse:
-Não suporto esse silêncio.
Mal fechou a boca ouvimos o disparo curto e seco. O eco reverberou nos varjões abaixo. Ela me olhou com grandes olhos paralisados e eu corri. Corri como nunca. Percorri os cinquenta metros entre a casa e eu em longas e breves passadas. Parei diante dos degraus da varanda onde estava, de bruços, uma idosa. Sobre ela estava uma velha cadeira de rodas. No meu ouvido o som do tiro. E uma voz que vinha do pomar ao longe.
-É sim, suicídio. Manda vir a polícia...
Permaneci acocorado junto ao corpo, observando uma pocinha que se formava em um dos lados do rosto da defunta e ouvindo o vento passeando nas mangueiras. Quando cansei levantei-me. Olhando para trás a vi debaixo da ameixeira puxando e retorcendo as velhas folhas. Uma angústia sincera saltou-me da boca em forma de grito:
-Sinto muito, lamento tudo isso.
A moça, parando de puxar as folhas, sentou-se num tronco de árvore e enrolou o vestido entre as pernas. Enquanto eu caminhava e me aproximava dela não via lágrimas em seu rosto. Pensei em dizer alguma coisa, qualquer coisa, entretanto nada disse assim que sentei ao lado dela. Apenas pus a mexerica em seu colo. Nós dois tínhamos muito o que falar quando a polícia chegasse.