Maria de Fátima e a besta
Já era à noitinha, quando mais uma vez ele chegou da rua exalando aquele forte odor de álcool pelo corpo todo. Claro, há muito me acostumara com essa situação, pois era mesmo raro o dia em que ele, vindo do trabalho, não passava no bar para beber com os amigos antes de vir para casa. Porém, dessa vez o bafo de pinga estava insuportável. Contive-me e resolvi ser cordial:
— Trabalhou muito hoje, querido?
— Demais! Tô morto de canseira. Tudo o que quero agora é jantá e bater direto na cama. Diante de tanto cinismo não me aguentei:
— Ora, talvez não se cansasse tanto se, em vez de se enfiar naquele boteco por duas horas, você voltasse direto pra sua família. Irritado ele franziu a fronte e retrucou:
— Eh, mulher, para de me encher o saco se não quiser tomar umas porradas no meio dessa sua cara. Eu trabalho feito um burro de carga para colocar comida nessa casa. Será que não tenho nem o direito de me distrair e divertir um pouco depois do serviço?
— Tá certo, Osmar, faça o que você quiser. Só que eu nunca me divirto.
_ Mas, é diferente, Fátima, você é mulher. Tem de ficar cuidando da casa e dos moleque. Imagina se mulher minha vai ficar batendo perna na rua. Falando nisso, os meninos já tão tomado banho?
— Sim, já estão banhados, jantados e na cama, como o meu senhor gosta.
— Eh, mas hoje tu tá querendo apanhar mesmo, não é? Vamos, Fátima, o que você fez de janta?
Nesse momento esbocei um leve sorriso e expliquei:
— Bom, como hoje é sexta-feira e as crianças queriam comer lanche, fiz uns cachorros-quentes deliciosos. O molho com as salsichas está sobre o fogão, Osmar. É só você esquentar e montar o lanche.
Meu Deus! Ao ouvir minha explicação o homem pareceu incorporar um demônio furioso e contrariado.
— Sua vagabunda! Deve ter ficado o dia inteiro de bate papo com aquela nossa vizinha igualmente imprestável e por isso não teve tempo de me preparar uma comida decente. Passa pro quarto, Fátima.
Com essas palavras o meu carrasco me arrastou até nosso quarto e trancou a porta. Retirou um cinto de couro de dentro do guarda-roupa e me arremessando sobre a cama, começou a me vergastar com a ponta da fivela. Ora, essa não era a primeira vez que meu marido me batia, porém, nunca me batera antes com tanta raiva, pois dessa vez mesmo implorando para que ele parasse, ele não parava.
Acordados certamente pelos meus gritos de socorro, meus dois filhos bateram na porta gritando aos prantos:
— Por favor, papai, pare de bater na mamãe!
Contudo, a besta se tornara surda aos apelos dos meninos, do mesmo modo que os vizinhos, há tempos, haviam se tornado surdos aos meus apelos, e assim intensificara o espancamento, desferindo-me socos e chutes. No ápice dessa violência, provocou o choque da minha cabeça contra uma parede. Finalmente perdi os sentidos.
Demorei muitos anos até criar coragem para contar a minha história de sofrimento ao lado de um verdadeiro verdugo. Mas, todo mundo tem um limite e o meu chegou finalmente. Porém, só depois do meu covarde assassinato.
Não, vocês não entenderam mal. Este é o doloroso relato de uma morta.
Por fim gostaria de agradecer às piedosas senhoras que cuidaram dos meus meninos e que nunca deixam faltar flores em meu túmulo. Contudo, a culpa consome meu espírito todos os dias, pois graças à minha falta de coragem e determinação, meus filhos sentem falta de uma mãe.