O Andarilho
Uma conversa com um mendigo que se tornou um guru para mim.
(...) No escritório, a manhã foi puxada, corrida, pressionada, mas não tão produtiva. A ansiedade me deixou meio sem fome, mas como era hora do almoço, saí para “reabastecer”. Comprei um lanche no Subway e fui comer na praça.
Então com um olho na praça e outro no lanche, começo sem pressa a desembrulhar o papel e começo a comer, mas logo depois da primeira mordida apareceu um morador de rua.
— Boa tarde! — Ele me disse.
— Boa tarde! — Respondi.
— Estou com fome, poderia me dar um pouco do teu lanche?
Olhei para o homem que estava desgastado talvez por consequências das desgraças da vida, agredida, batida, sofrida e dos direitos banida.
— Sim...
— Muito obrigado!
Comecei a dividir meio lanche, entreguei para ele o lado que não tinha mordido ainda e ofereci o refrigerante. Foi quando ele me surpreendeu ao me perguntar:
— Posso me sentar ao teu lado?
— Claro. Fica à vontade.
E começamos a conversar. Ele me perguntou:
— O que te fez vir comer na praça?
— Bem, trabalho aqui nas proximidades e esta semana está loucamente complexa e confusa. Então para aliviar o estresse nada melhor que vir almoçar e observar um pouco.
— Isso é bom. Gosto de observar, mas levei muito tempo para começar.
— O.K, mas você mora por estas bandas?
— Não, sou andarilho, conheço um pouco deste “brazilzão” do norte, nordeste, centro, sul e sudeste.
— Nossa, você é uma caixinha de surpresa! Quem te olha não faz ideia disso… Sem julgamento.
— Verdade, nem tudo é o que aparenta. Por trás da gravata tem um mistério escondido.
— Bem, isso mesmo. Então me fale como você fez para conhecer o Brasil em detalhes?
— Está bem, mas antes me responde de onde é este sotaque aportuguesado?
— De Angola, sou angolano e vim aqui estudar.
— Seja bem-vindo ao Brasil.
— Obrigado.
— Então para te falar como conheci o Brasil, preciso te contar sobre a minha vida e vai demorar.
— Sem problemas, temos 30 minutos pelos menos.
— Acho que é suficiente.
— O.K, então podes começar.
— Eu era um empresário de sucesso, se posso assim considerar. Tinha imobiliárias em Cuiabá, era casado com uma linda e carinhosa mulher, pai de uma lindo filho, que nasceu quando eu tinha 19 anos. Até aqui a minha vida era uma maravilha. Quando o meu filho completou 18 anos, dei um carro para ele, certa noite saindo de uma balada para outra, ele bateu o carro e com ele morreu mais três jovens amigos dele. Quando soube da notícia comecei a me sentir culpado, pois não dei limites a ele…
— Nossa, deve ser sido um choque e tanto. Pai nenhum deveria enterrar o filho. Isso deveria ser proibido nas leis do universo.
— Tens razão garoto. Mas não foi isso o principal ou o único motivo. Na verdade, isso apenas balançou as minhas estruturas.
— Imagino como!
— Então, pouco dias depois de ter enterrado o meu filho, descobri que o meu sócio e a minha mulher estavam me traindo e tinham um caso há muito tempo.
— Sério?
— Sim… Queria muito que não fosse verdade, mas era. E como a caso era de muito tempo sem ela se perceber, fiz um teste de DNA na nossa filha caçula e a relevação não foi boa.
— Como assim?
— Ela não era minha filha. Era filha do meu sócio.
— Mas isso não deveria te afetar tanto, pois pai é quem cria.
— Este ditado popular é muito lindo, mas apenas quando não é você que está na pele do pai traído.
— Não posso negar que estás coberto de razão.
— Confrontei minha esposa e meu sócio, com fortes ameaças, até os dois assumirem e me confirmarem.
— Acho que este foi o pior momento para você então…
— Também achava, mas não era não. O faturamento na empresa começou a cair, as dívidas começaram a aumentar, meu sócio tinha me roubado e deixado a empresa a beira da falência. Para piorar, comecei a beber cada vai mais, a fumar cigarro, maconha e a usar cocaína e uma coisa leva a outra. Pirei totalmente e quando vi já estava a usar pedra de craque e os momentos de lucidez foram se tornando poucos… Até que perdi tudo. E fui parar em uma casa de recuperação. Fiquei internado lá por muito tempo, mas depois venci o vício das drogas.
— Foi então que vi que minha vida não tinha mais sentido. Nem as drogas estavam dando algum sentido a ela. Então decidi ser andarilho e conhecer outros lugares, outras pessoas e viver sem uma meta, sem obrigação, sem um padrão e sem esperar nada.
— Tenho apenas mais duas perguntas, vou fazer as duas em simultâneo.
— Você se arrepende? Valeu a pena ser andarilho?
— Não me arrependo, até porque apenas reagi aos dissabores da vida… Mas a pergunta não seria o que aprendi com o sofrimento que passei e passo?
— Não tinha pensado nesta pergunta. Mas, agora, qual é a resposta?
— Sofrimento é parte da vida, mas somos educados a pensar na vida como uma ferramenta para buscar felicidade a todo custo e assim nos acovardamos e não conseguimos lidar com instantes da vida que não são prazerosos.
— Caramba… Isso é muito profundo. E pior é que para mim faz sentido.
— Não só para você e pra mim, mas para quase todos seres humanos. Vivemos mais como turistas, aproveitando apenas o destino e nunca a caminhada, o trajeto. Próxima página do livro ou próximo livro, próxima meta no trabalho ou próximo emprego…
Estou em uma nova fase, deixei de ser o turista e passei a ser o peregrino que não fica mais ansioso para chegar ao destino, mas aproveita ao máximo a caminhada. E o próximo passo talvez seja juntar o melhor do turista com o melhor do peregrino.
— Muito louco isso, mas no bom sentido… Te admiro.
Neste momento, olhei para o relógio e estava 10 minutos atrasado. Olhei para o homem e estendi a minha mão para uma saudação de despedida.
— Muito obrigado pela conversa e partilhar a sua experiência de vida. Prazer, sou o Álvaro.
— O prazer é todo meu. Sou o Carlos.
E assim sai correndo para o trabalho.
Mas uma lição que aprendi é que não deve apenas ouvir pessoas que dizem que estão no topo ou são o “sucesso”. Sempre podemos aprender com a caminhada de alguém.
Talvez nunca volte a ver o Carlos, mas certamente o levarei comigo.
Fonte: Arte Vivida