Cena Brasileira

Estavam ai num barraco de uma só dependência, um casal de retirante em volta de uma mes feita de caixotes de sabão, sentados em tamboretes bamboleantes, escolhendo o feijão e colocando numa bacia improvisada de uma lata velha de doce. Era pouco feijão (puro sem mistura)itas bocas. Além deles dois havia ma escadinha de seis filhos. Aquele processo de escolha do feijão era também um ato de amor;eles faziam aquilo em silêncio, como se estivessem rezando, mas na verdade conversavam com os olhos, seus pensamentos se voltavam para a terra natal que tinham deixado, banidos pela seca e pela invasão do boi e do capim perpetradas pelos latifundiários. Venderam o pequeno sítio a preço de banana, foram enganados pelo canto de sereia da cidade grande, expulsos da sua terra pela política perversa dos governos. De agricultores foram reduzidos a se-terra e daí ganharam a patente de favelados, mendigos, marginais da sociedade injusta e fria, materialista e cínica. O filho mais velho já estava trilhando os meandros da violência e do vício, de trombadinha fora promovido a assaltante. A filha de treze anos começava a ser cobiçada pelo dono da mercearia e pelos malandros da favela. Muito em breve estaria se prostituindo. Os mais novos, diariamente, saíam para o cento da cidade para esmolar e praticar os primeiros furtos, eram menores de rua, trombadinhas. O pai havia trabalhado em diversas oportunidades de servente de pedreiro mas tudo serviço rápido, sazonal. A crise não permitia qualquer tipo de estabilidade, o neoliberalismo é assim mesmo, é tudo questão de atender à globalização, novos tempos e etc e tal e coisa. O pobre homem estava se consumindo em desespero e bebia constantemente. A mãe sofria com o sofrimento de sua própria família, mas a sua fé a impedia de qualquer tipo de revolta, quando a fome apertava e o desespero chegava ela lançava mão do terço (rosário) e rezava. Ou então ligava a velha tevê em preto e branco e esquecia o mundo real, a fome, os problemas, vendo o maravilhoso mundo da tevê em que nçao há problemas sociais.

Mesmo sem nenhuma instrução eles tinham absoluta convicção de que eram vítimas da injustiça de um sistema que degradava as pessoas transformando-as em párias. Sabiam, agora, que por mais difícil que fosse a vida no campo ela era muito melhor do que na periferia das grandes cidades. No campo, além das criações e de outros alimentos que conseguiam cultivar mesmo na seca havia os amigos. Na cidade grande não existia qualquer tipo de alimento e muito menos qualquer amigo. Naquela selva de pedra, rodeada de lama, vigorava a "lei do murici": cada um por si e Deus or todos. Sim, é certo que havia Deus, mas parece que as forças do mal - que eram as injustiças - estavam levando a melhor naquela batalha pela sobrevivência. Na sua santa ingenuidade acreditavam que tudo aquilo que sofriam era devido aos pecados que haviam cometido. Só não sabiam quais eram esses pecados, mas raciocinavam que se há castigo é por causa dos pecados, se bem que tinham ouvido, recentemente, u homem falando em cima de um banco de praça dizer que não era Deus quem permitia a pobreza, que ela era resultado das injustiças sociais e que era necessário o povo se levantar e exigir uma vida decente. Ouviram o homem falar e olharam-se nos olhos concordando com oque ele dizia, mas logo na esquina se benzeram arrependendo-se de terem momentaneamente concordado com aquelas heresias, na certa aquele cara era um comunista. Quando chegaram ao barraco esfomeados, sem er o que comer, ligaram a tevê e ficaram orgulhosos quando o locutor disse que o Brasil era medalha de ouro em iatismo e vólei de praia,além de ter conseguido medalha de bronze em hipismo, so não entendiam como havia perdido no futebol para uns neguinhos da África. Mas diante dos berros do locutor e da vinheta Brazil, ZIL! Zil! Zil!, o negócio era concordar com a tevê, mesmo com fome.

Esta cena da vida brasileira não é nenhuma invenção, ficção, fantasia. Ela é vivida por milhares de brasileiros que estão marginalizados pelas injustiças sociais, vítimas do elitismo da nossa sociedade, da demagogia dos políticos, da incompetência dos governos, do saque das multinacionais. O nosso povo ainda não sabe - porque é alienado - da força que tem nas suas mãos. Mas não custa esperar pela gota d'água que transbordará o copo da paciência popular. E esse mesmo povo, pacífico e ingênuo, será capaz de mudar as estruturas e estabelecer um novo sistema econômico que faça justiça socia, edificando uma sociedade humana e fraterna, sem explorados e nem exploradores.

P.S. Este arremedo de conto foi escrito em agosto de 1996. Houve avanços depois disso, mas a miséria absoluta está voltando. Agro não é tudo. E priu. Inté.l

Dartagnan Ferraz
Enviado por Dartagnan Ferraz em 24/04/2019
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