O URUGUAIO*

Agradecendo a Deus a nova oportunidade, depois de uma luta de mais de onze horas e uma equipe toda de especialistas ao redor de si, extirpando os tumores malignos internamente espalhados pelo pescoço, com pontos demarcando todo o espaço, como um colar. Falando bem, em modulação mais baixa, mas conseguindo expressar-se, além de estar de pé e andando, se locomovendo. “ Vi a morte perto, não o seu rosto, mas o capuz preto me rodeando, passando, até que assistentes espirituais (?), de branco, se achegaram, então tive certeza de que ganharia mais tempo. Inconsciente, após a cirurgia, adveio uma hemorragia, contou-me um dos médicos, em que alega que pensou que perderiam a batalha, mas cá estou, vivo.”

Todos os que cruzam nosso caminho deixam suas impressões, a convivência estabelece vínculos à guisa de amizade. O conheci da varanda do meu apartamento, sendo seu comércio fronteiriço, do outro lado da rua. O observava lendo o jornal popular no atelier desarrumado, onde confeccionava placas e faixas, e que despontava, em um cavalete, a imagem a óleo de uma figura conhecida, um homem público, encomenda de alguém, a distinguir-se dos demais materiais, denotando uma sensibilidade artística, além dos pincéis e instrumentos de anúncios comerciais... No improvisado sótão do estabelecimento, feito de madeira, alojava-se em improvisado dormitório, nos dias em que não ia para sua casa, em bairro distante. Banhava-se no banheiro ao fundo. Estávamos em plena campanha para a prefeitura de São Paulo, e a minha encomenda, extensa faixa, referia-se a minha candidata, já tendo sido prefeita, e que tentava retornar ao cargo, cercada por preconceitos a ela e a sua agremiação política, desde sempre vítima de estigmas e maledicências.

Estabeleceu-se certa simpatia, visto ser ele de mesma tendência política, mas afirmando-se anarquista, de tristes lembranças da ditadura militar uruguaia, mal que se estendeu por todo o continente sulamericano, repositório de violências e atentados aos direitos civis, não sendo diferente em solo brasileiro. Assim, quase que diariamente, pretextando um cafezinho, nos encontrávamos. Com o tempo mudou-se dali mas continuamos nos vendo amiúde. A sua cultura cinematográfica, além de uma excelente memória, capaz de lembrar-se de cenas de filmes antigos, narrando detalhes, descrevendo o elenco, é surpreendente. A participação fugaz em uma película nacional, No País dos Tenentes, onde aparece por segundos gritando entre manifestantes, marca sua estreia em sua paixão. Várias lembranças me ocorrem, até o inusitado de lhe emprestar os próprios sapatos, em um bar, para que ele fosse dançar ( outra de suas habilidades !). Ocasião em que, envergonhado, confessou-me que era pai mais uma vez, recente, de dias, mas não conhecera, ainda, seu filho recém nascido, distante que se encontrava há dias de sua residência. Tomei a iniciativa, estimulado por ele, de telefonar para sua esposa, ao que respondeu, algo desalentada: Ele é assim mesmo... Pai em sua terra de dois rapazotes e de outro, já no Brasil, sem manter relação de proximidade, coisas da mulher separada, justificava-se. Ao todo sete descendentes, em três relacionamentos, seis meninos e uma menina, além de um enteado. De temperamento intranquilo, não dado a muitas ponderações, não se alongando em muitos assuntos, exceto nas divagações sobre a sétima arte, seu tema preferido. O cigarro sempre à mão, como se o contivesse em suas expressões. Nas refeições era comum solicitar o pão francês no acompanhamento, costume em sua terra natal . Raramente aceitava a conta sem questionar alguma coisa ao garçom, sendo constrangedor nesses momentos. Percebi que não era bom ouvinte, diferente de quando tinha a palavra, ou dominasse a conversa. Frequentamos alguns bingos, sentia sua angústia quando ficava na boa, rabiscando a cartela ansioso, e, em seguida, retirar-se para fumar e se aquietar de sua intranquilidade. Não me recordo de vê-lo embriagado, mesmo quando tomávamos várias cervejas juntos, e nem cometer indelicadezas em função disso. Testemunhei várias aberturas de seu comércio, infelizmente mal sucedidos, fechados tempos depois. Soube por ele, depois de uma temporada sem nos vermos, de que estivera preso por quinze dias. Aceitara a ligação clandestina de um “gato” de televisão a cabo em seu estabelecimento, fato, apesar de ilegal, mais comum do que se imagina. Ocorre que os executores foram detidos e o envolveram no caso, seja porque os investigadores, seguindo os fios, chegaram até sua oficina de trabalho; a princípio convidado para prestar testemunhos na delegacia, e, no mesmo dia, envolvido no ilícito como cúmplice. Assisti-lhe na audiência, onde externei conhecê-lo, bem como apresentar a sua defesa prévia. Desatento da gravidade, ou mesmo desinteressado dos fatos, deixou-me de apresentar suas referências, levando-me a desistir da assistência. Entre o receio de encontrar-se em dívida com a Justiça e a desatenção, os anos vão se sucedendo.

E de negligências com a própria vida vai sobrevivendo, sonhando com um futuro para ajudá-lo a suportar o presente, como nas películas de velhos filmes relembrados.

*Publicado na antologia de contos E Foi Assim... editora CBJE, Rio de Janeiro-RJ.