PORTEIRO OU CONTROLADOR DE ACESSO?????

Madrugada de outono. Final de abril. Sábado. O celular despertou. Ópera de Verdi. O aparelho vibrava no criado mudo. Cinco horas. Queria ficar um pouco mais no edredom quentinho. A companheira velha de guerra roncava igual britadeira ao seu lado. Quarenta anos de enlace. Dois filhos adultos. Com movimentos friamente calculados e lentos devido as dores na coluna, ele desceu da cama king que a esposa comprara nas casas Bahia, em suaves prestações a perder de vista. -" A bicha é cara mas é boa! Não range, não mexe e dá pra dormir esparramado!!!" Pensou enquanto calçava o chinelo havaianas. Acendeu a luz do corredor. Apartamento 306. Achou os óculos sobre o aparador. Era um mister Magoo sem eles, cegueta total. A toalha azul tinha o seu nome bordado mas ainda assim pegava enganado a toalha da mulher. Pense numa onça brava!! A esposa era mais brava!!! -" Homem tem o cheiro forte demais, meu velho!!" Ela repetia. Quando a esposa passa a chamar o companheiro de velho é sinal que o caboclo está quase dobrando o cabo da boa esperança! Quando abriu o chuveiro foi que se lembrou que tinha que trocar a resistência. O inverno estava as portas. O trem não tá esquentando direito. Ainda usava a mesma marca de sabonete Palmolive. Era fiel. Usava sempre os mesmos perfumes e creme dental. -" Pena que o Kolynos sumiu!!!" Pensou, enquanto abria o fixador de dentadura. Se barbeara na noite anterior pra ganhar tempo. De manhã o tempo voa. Se trocava no quarto de hóspedes. Não queria acordar a esposa nem fazer barulho no apartamento de baixo. O dever o chamava. As contas chegavam. A esposa deixara o uniforme passado sobre a cadeira do computador. Ele sorriu. Agradeceu pelo carinho e zelo da mulher. Agradeceu pelo emprego. Orou pelos milhões de desempregados. Calça preta. Camisa azul de ombreiras amarelas. Gravata com o nó feito. Sapato brilhante. Cinto. Estava há um ano na empresa. Foi até a cozinha. Leite quente no microondas. Café solúvel. Bolo de milho da esposa. Adoçante. A esposa lhe deixara um lanche de pão integral com mussarela enrolado com papel alumínio. Uma maçã no insufilme. Ele guardou os alimentos na bolsa com a marmita. Escovou os dentes. Conferiu os ítens da bolsa Adidas. Carregador de celular, cartão do ônibus, crachá da firma, chaves, guarda chuvas, óculos.... -" Aiiii... Meu Deus, os óculos??" Foi a cozinha e não os encontrou. O banheiro!!! Olhou o espelho. Riu ao ver os óculos no rosto. Apagou a luz e fechou o apê. Escadas, porta e portão. Estava frio lá fora. Ainda era escuro. Catadores de reciclagem e outros trabalhadores na rua. O jornaleiro com sua moto. Duas quadras até o ponto de ônibus. No fone de ouvido ele curtia Antena Um FM. Aquelas músicas dos anos 70 e 80 turbinavam suas baterias de alegria e otimismo. Era capaz de passar as doze horas que teria pela frente com um sorriso de orelha a orelha. Rendeu o vigia noturno. Leu um salmo antes de começar o turno. Era um hábito. Rondas. Uma olhada rápida no jornal. Bilhetes, telefone, interfone, Nextel, câmeras, pranchetas, recados, livros, chaves, atas, prestadores de serviços, garagem, elevadores, WhatsApp, escadas, ocorrências...perguntavam-lhe sobre o tempo, o horóscopo, o jogo de futebol da noite passada, a alta do dólar, a fala do Trump, o preço do feijão, dos buracos da cidade, da dengue, sobre a novela das nove.... onde fica a Associação Comercial?? Onde é a rua tal??... ufa!!! Ele está lá antes de todos. É o cartão de visitas, dizem alguns. Muitos acham que ele não faz nada. É só decoração. Se tem alguém que valoriza o trabalho dele é ele mesmo pois vê mais além de um emprego uma missão de auxiliar as pessoas. -" Você diz bom dia pra todos os que passam aqui, porteiro???" Perguntou-lhe um jovem. -"Ahhh, não!! Só desejo bom dia até as doze horas!! Depois digo boa tarde!!!" Uma piada, uma sacada pra tudo. Uma gentileza com os idosos, um palhaço com as crianças... Ao final do turno o antitranspirante venceu mas o sorriso é o mesmo!!! Como diz o sábio poeta contemporâneo Chico Pinheiro: ..."é vida que segue!!!" FIM.

marcos dias macedo
Enviado por marcos dias macedo em 20/04/2019
Reeditado em 20/04/2019
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