Uma vez canalha, sempre canalha

Estava tenso, precisava tomar um Lexotan. Sempre ficava assim quando se sentia ameaçado por u concorrente. Tentava se acalmar, pensar positivo. até levar o provável insucesso na esportiva. Mas não conseguia. e a tensão gerava irritabilidade. ficava explosivo vom as pessoas humildes, inclusive com amigos dos tempos das vacas magras. Despachava-os rudemente ou evitava-os, achava que eram lixo, um estorvo. A grossura se apoderava do seu ser. Pressentia que a frustração era iminente. Não sabia perder, nem tampouco ser ignorado. O seu ego necessitava ser constantemente massageado. Às vezes sentia um desejo irrefreável de ser elogiado, mesmo que o elogio fosse falso. Se preciso, no auge da tesão por elogio, era capaz de agar por ele, de pedir, suplicar, mendigar um elogio.

Quando sofria um "surto" ficava irascível até com a própria família. A preocupação recente decorria do fato de ter notado que um figurão do lugar, um todo poderoso que além de rico era um mandachuva, estaria dando mais atenção a um desafeto seu justamente o que mais odiava porque o ameaçava nas suas "tacadas". Estava surpreso, afinal havia cumprido à risca todo o ritual da vassalagem, inclsusive presenteado esse chefe maior com o último lançamento do "smartphone". Que teria armado seu desafeto? - Não, não é possível - balançou a cabeça pê da vida - que aquele crápula tenha agendado um encontro do chefe com aquela gata de fora que ele tanto admirava e babava de desejo?!!!!!!! Deve ter sido isso, pensou, "eu devia ter me antecipado, talvez nem tivesse gasto tanto, mas fui desatento e meio amarrado". Sim, penso, era preciso tomar um "Lex", urgente, mas aí ponderou, "esse comprimido dá sono, e melhor tomar um chá de camomila".

Esticou-se na cadeira giratória, pensou em ligar para um amigo que era perito rm averiguar os boatos mais recentes. Seria auma forma de saber se a ilação sobre a "Capitu" procedia. Mas aí, já com o celular na mão, sentiu um estalo de preocupação: "Se fizer isso não estarei dando um sinal de fraqueza, confessando que estou com medo?!!!!!!!!!!". Não, era melhor esperar, até porque talvez o chefe estivesse com algum problema familiar, um filho que fizera uma besteira, uma filha que estaria saindo com um malandro, a esposa que estourara um cartão de crédito ou... ah, vida, a gente sempre querendo subir e ficando cada vez mais dependente dos graúdos de merda, nos tornando subservientes a tiranetes de plantão e poderosos de araque, sempre abdicando da nossa honra e do nosso caráter. Mas ai ficou contrariado e explodiu irado: "Mas que conseguimos comprar com honra? Quantos quilos de feijão se compra com caráter? Era só que faltava pensar nessas besteiras".

Lembrou-se que precisava molhar a mão de alguns experts em promoção dos novos-ricos, necessitava de alguns "reclames", desses elogios pagos que faziam bem ao seu ego e lembrava à arraia miúda e até à casse media que ele era uma figura em ascensão. Essa gentalha precisava tomar conhecimento de sua escalada social, de que era chique, notável na terrinha. Não perdeu tempo, pegou o celular e igou para um radialista bem como para m "promoter saracoteante", avisando que passassem no escritório para apanhar um "mimo". Era o código que usava para designar um chequinho mixuruca para pagar as "notinhas elogiosas". im, era preciso pagar pela autopromoção, afinal, pensou, quem trabalha de graça é relógio. Já estava mais descontraído.

Olhou para as paredes do escritório, ceias de quadros e diplomas de melhor do ano. Notou que o crucifixo estava colocado abaixo do poster do insigne chefe, fizera isso para reforçar seu chaleirismo ao líder maior. Achava que fora um gesto corajoso, mas sentiu l[a dentro de si u medinho... Foi se tranquilizando. Estava até pensando em entrar para uma sociedade de notáveis nas letras, já contactara com um pena alugada" para escrever algumas loas sobre o chefe e sobre algumas bobagens para enfeixar num livreto, mesmo fininho, para justificar sua condição de intelectual. Sentiu falta de um grande retrato dele próprio na parede, vestindo o fardão e, quem sabe, com uma espada, mas ponderou, talvez fosse melhor encomendar uma escultura para botar em cma d brô. Sentiu-se um ilar da sociedade. utra coisa: na próxima fesa que houvesse ele iria de smoking, iria comprar um num brechô da Rua da Imperatriz, u era na Rua da Praia? Ninguém notaria notaria que era de segunda mão, comprado no vuco-vuco, mandaria ajustar ao seu corpo. Gostava de irritar os recalcados, comunistas agitadores, eles tinham que engoli-lo, inclusive no passado denunciara anonimamente alguns deles. Foi se alegrando, foi até o frigobar e pegou um balde com gelo. Abru a gaveta do birô e retirou um litro de uísque Chivas, escondia-o (porque era caro, ele ignorava que era falso e pirata), colocou uma dose generosa e tomou-a de vez, fez uma careta e peidou, mas se sentiu bem porque uísque chique era habito de "gente in". Mas passados alguns momentos a angustia voltou. Teve um mau pressentimento, e eis que o telefone tocou, ele atendeu, era seu assessor e pau-mandado encarregado de or em marcha uma "tacada", algo relacionado com licitação e transação ilícita, algo por debaixo dos panos. O cara informou que havia pintado sujeira, houvera intromissão de um terceiro e, pimba!, a negociata fracassara. O homem deu um murro na mesa que voou balde, copo e litro de uísque, sujando o tapete paraguaio (comprado como e fosse da Turquia). Chamou uma servnte aos gritos, mandou que limpasse tudo. Depois, na maior grossura, mandu que a empregada se retirasse. Sentou-se, tentou relaxar, mas aí entrou na sala uma senhora idosa, mancando, apoiada numa bengala, era uma velha de mais de oitenta anos, negra de cabelos totalmente brancos, arfando, notava-se que respirava com dificuldade. Ela pediu licença e começou a suplicar uma ajuda para comprar remédios para o coração, com uma receita na mão. Nem completou a sua súplica, o homem aos berros destratou-a, sem nenhum respeito à idade e à saúde frágil da idosa. Depois do esporro humilhante, jogou uma cédula de cem reais no chão e mandu que a velha apanhasse. Depois do coice do esporro aplicou a queda da humilhação. Mas a a velha tinha brio, dos seus olhos rolaram lágrimas, e ela se retirou da sala, digna, sem se submeter à humilhação. Ele então apanhou a cédula e recolocou na carteira, Mas depois que se sentou sentiu uma espécie de remorso. É que aquela velha fora sua ama de leite, quando ele nasceu, a sua mãe nao pode amamentá-lo e então se valeu da empregada que já amamentava o filhinho dela. Ela amamentou-o durante mais de um ano. Depois continuou na casa de sua família por mais de trinta anos. Agora estava doente com problemas no coração e não dispunha de dinheiro para comprar os remédios. O homem, arrependido, mandou que a servente fosse chamar a velha, mas ela não a encontrou. O homem sentiu-se um crápula, um ingrato, um verme.

Ficou ali pensando no passado, no tempo que fora um adolescente educado e solidário, era até humilde. Quando foi que perdera a delicadeza e todos os nobres sentimentos? Como se ornara um canalha? Estava nesse surto de autocrítica quando o telefone tocou. Era novamente o assessor que contou que estava tudo nos trinques, rego batido e ponta virada, a "tacada" dera certo, fora apenas, antes, alarme falso. Detalhe: o chefe mandara convidá-lo para janar logo mais à noite, dissera que ele era seu braço direito e queria agradecer o mimo do smartfhone. Ora, essa boa nova era música para seus ouvidos. Acabara os pensamentos negativos. Quanto à velha, mandaria levar o dinheiro, em vez de cem reais mandaria cento e cinquenta. ensou: "A pobre já está pela bola sete, nesses dias só terei despesa com o caixão de segunda classe". E riu o riso dos canalhas. Uma vez canalha, semre canalha. Inté.

Dartagnan Ferraz
Enviado por Dartagnan Ferraz em 16/04/2019
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