Andando ao redor

"Os meus fantasmas tornaram minha solidão um vício/E minha solução um status quo". Raul Seixas

“Você já se sentiu como se fosse um coelho perseguido e encurralado por cem mil cães?" disse o rapaz. O homem de cabelos grisalhos e anéis nos dedos olhou ao redor, mas não respondeu de pronto. Passeou os olhos pela estante, demorando-se nos porta-retratos. Caminhou em direção à janela e abriu as cortinas. Viu o jardim bem cuidado e com a grama cortada. O carro novo reluzindo sob o sol. E pairando sobre tudo o silêncio de um bairro de classe média alta. Voltou-se para o paciente e cofiando o cavanhaque comentou pensativo:

-Acho que sei o que é isto.

Sentou-se na banqueta próximo ao divã e, com ar professoral, explicou que o jovem havia criado uma ótima metáfora sobre a vida, entretanto há outras metáforas, ele afirmou. E viver é criar metáforas, decifrá-las. Falou isto pondo-se de pé e indo até a estante. Retirou de lá um volume empoeirado, com um bigodudo na capa. Mostrou para o rapaz.

-É preciso cavar fundo...

Olhou para o jovem que olhando ao redor pensava: “Quando esmurro a cara do mundo é sempre meu nariz que sangra”, quase disse isso para o psiquiatra. Entretanto ficou quieto, pois sabia qual seria a resposta do doutor:

-Escreva, menino. Escreva!

Reclinando, recostou-se confortavelmente no divã, sabendo que teria apenas mais cinco minutos de análise. Na antessala, ao lado, outro paciente aguardava. Sendo assim, resolveu improvisar e disse:

-Sessão encerrada, doutor! Estou indo.

O homem da roupa branca levantou-se. Apertou a mão do rapaz e com um tapinha no ombro conduziu-o até a porta. Ajeitou os óculos e falou:

-Escreva e falará a uma multidão. Senão, vai vir aqui falar comigo muitas vezes...

O rapaz virou as costas, atravessou resoluto a antessala e saiu à rua. O sol castigava o seu rosto e o vento empoeirado de uma cidade em obras o fazia caminhar entrefechando os olhos a cada passo. Estava calmo, mas dentro de si alguma coisa se movia. Fosse uma ideia ou fossem gazes deveria ser posto pra fora. Dessa forma caminhou quase a tarde inteira.

Assim que chegou à pensão desabou sobre o sofá com roupa e tudo. Pegou o controle e ligou a tv. Deitou de lado no sofá e esperou o sono. Ele veio como a noite e, sem pedir licença, tomou conta de tudo. Depois de alguns pesadelos, acordou. O clarão da tv no quarto escuro lhe forneceu uma ideia, uma metáfora e um plano. Então, com uma mão no queixo e a outra no celular ficou parado olhando para a tela e vendo. Vendo e sentindo. E viu:

“Os dois deitados na cama na penumbra do quarto. A janela está aberta e a brisa soprando as cortinas. O homem sorri. A mulher, deitada sobre o peito dele, olha distraída para fora. Um casal de desodorantes, na escrivaninha ao lado, repousa ao som de Cole Porter. Depois, um jovem simpático - com jeitão de surfista - desliga uma tv, antes mesmo de passar os créditos no final do filme. Esfrega as mãos animadamente e se dirige à geladeira. Retira de lá - ao som de um rock pesadão - uma lata de cerveja mostrando a marca para a câmera. Em seguida, passam na rua duas crianças sorrindo com seus dentes brancos - menos brancos do que suas roupas - e seguindo em direção ao barulho de uma festa. O brilho da roupa das crianças toma conta da tela e em seu lugar surge o nome de uma marca de sabão.”

Quando cansou de ver se levantou do sofá e saiu da sala. Atravessou o pequeno pátio comunitário do seu quarto de pensão e sentou-se no banco de cimento no canto do muro. Sentiu. E começou a digitar no bloco de notas do celular. Sorriu e pensou sorrindo que tudo isso daria um conto. Depois ficou em dúvida se o enviaria para um amigo escritor, para o psiquiatra ou para um site na internet.

Ainda se batendo com essa frágil dúvida voltou para o quarto. Precisava desligar sua fonte de inspiração. A vida e a escrita lá fora exigem mais, intuiu. Entretanto, no momento em que pensa em apertar o botão, desiste. Ia passar o imperdível Meia Noite em Paris...

Deixou o filme passando enquanto foi ao quarto trocar de roupas. Em meia hora teria que servir cervejas, água tônica e refrigerantes para casais enfastiados na lanchonete do parque. Não teria tempo de sonhar, por enquanto. De madrugada, quem sabe?

make
Enviado por make em 13/04/2019
Reeditado em 04/05/2019
Código do texto: T6622590
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