PER ANDARE VIA - Capítulo 1 – MODO AVIÃO

Eu só me lembro de um dia abrir os olhos e ver uma pilha de roupas suja e embalagens de biscoitos. Ou bolachas, você escolhe. Com a cabeça ainda afundada no moletom que me servia de travesseiro, com o único olho visível, busquei no canto da sala os fragmentos do que, sei lá quanto tempo atrás, foi o meu celular. Daí, eu me lembro. E sempre eu que me lembro, eu só queria sumir. Talvez, sumir sob uma pilha de roupas sujas fosse a forma mais fácil, rápida e indolor de fazer isso acontecer. Eu estava jogado no sofá que ficava ao lado de uma porta de vidro que dava para a sacada do apartamento. Vigésimo andar. Não que essa informação vá fazer alguma diferença. Vinte. Eu queria voltar aos meus vinte anos. Recomeçar. Evitar lugares. Evitar pessoas. Evitar os excessos negativos. Mas, me jogar mais. Não do vigésimo andar. Me jogar na vida. Eu não sabia a hora, mas era de noite. A brisa da porta entreaberta fazia parecer a brisa da madrugada. A brisa da madrugada é uma das poucas coisas na vida que não se pode fingir, não se pode projetar artificialmente. A luz piscante de um avião atravessando o céu era o único movimento que se podia ver dali, além do topo dos prédios ao redor e para-raios.

“No dia em que nascemos e viemos para o mundo, nos falta uma costela que encontramos num segundo...”.

Era o que Dona Alice, a vizinha - quando lhe dava saudade de algo, de alguém - sempre ouvia. “Mia Gioconda”. Fosse à hora que fosse. Geralmente ela ouvia enquanto cozinhava. Quase sempre macarronada, ás vezes bolo, que, quando acontecia de ser de madrugada, ela deixava uma boa quantidade numa tupperware na minha porta. Ela devia ter seus oitenta anos ou mais. Eu nunca perguntei. Esquentei um resto de café do bule de três ou quatro dias atrás e observei o dia clarear sentado naquele puff, na sacada enquanto Dona Alice repetia pela trigésima vez Aguinaldo Rayol. Diziam que ela era a filha mais nova do Vicente Celestino. Foi ele quem compôs “Mia Gioconda”. A história da música realmente aconteceu. O que somos capazes de fazer por alguém... O que realmente importa é o que deixamos de fazer por alguém. E no fim, isso parece não valer de nada.

- 1.200,00, patrão. Mas mesmo assim não é certeza de que vai voltar a funcionar cem por cento. – Disse o homem com topete oleoso, costeletas enormes e uma camiseta familiar.

- Cash...? – Eu acenei positivamente pra ele observando a camiseta.

- Isso, patrão, só cash mesmo. Grana. Dinheiro. Bufunfa.

- Não... Na sua camiseta, é o Johnny Cash.

- Sei não meu patrão, eu ganhei do meu sobrinho, sabe? É o que, dessas marca famosa, é? Tipo Luis Vitão ou Versati?

- Você gosta de ouvir o que? - Perguntei me apoiando no balcão.

- Eu? Rapaz, eu gosto muito de ouvir que o pagamento caiu, não vou negar não, meu patrão.

- Haha, ta certo... E qual é o seu maior sonho?

- Rapaz... É ser chamado de rico pela cidade toda. - Ele afirmou sorrindo.

- Qual é o seu nome?

- Eu me chamo Zé Alves e o seu?

- Obrigado, Zé, não vale a pena arrumar esse celular.

Caminhei de volta para o apartamento próximo á Consolação. No trajeto, em cada esquina uma lembrança que incomodava. Era como entrar numa piscina de alfinetes. Eu sabia que naquele dia algo mudaria, eu só não sabia ainda o que, nem onde.

- Me vê um Bauru, por favor – Pedi na padaria.

Sabe quando o dia parece meio turvo? Parece silencioso demais, calmo demais...?

Eu encarava a televisão sem som no canto da padaria. Passava o Jornal, alguma gangue tinha espancado o filho de alguém importante. Eu senti alguém sentar no banco ao lado do meu.

Usava um moletom escuro e se escondia sob o capuz. Fui discreto ao rolar os olhos de canto de olho e perceber as mãos sobre o balcão. Estavam machucadas, com feridas recém-abertas.

- Me vê uma água da torneira, por favor – Pediu ao atendente. Era uma voz feminina e de tom baixo.

O atendente se distanciou encarando ela e enquanto abria a torneira, enquanto o copo enchia, enquanto fechava a torneira e enquanto se reaproximava, continuou encarando.

- Obrigada. O Seu Toninho tai? – Ela perguntou antes do primeiro gole.

- Não... Ta doente. Coluna zuada. É veio, né? – Respondeu o com ar seco.

- Pô, me vê um lanche qualquer aí fiado, depois acerto com ele. – Ela pediu enquanto tentava acender um isqueiro que tirou da bolsa desbotada. Sem sucesso.

- Sem chance, Ba, sem ele aqui não vai rolar não, só esse mês já foram três assaltos, tá quase pra fechar isso aqui, quebraram até o banheiro da última vez – Ele disse a ela enquanto colocava o prato com o meu Bauru no balcão.

- Tó, eu pego outro – Eu disse á ela direcionando o prato próximo do seu braço, que ela afastou.

- Não sou mendiga não, pode ficar – Ela esbravejou sem me olhar, procurando algo dentro da bolsa surrada. Molhou dois dedos no copo d’água e passou no rosto ainda coberto pela touca do moletom. Voltou a emergir os dedos no copo de água, o que a escureceu um pouco.

- Não, eu insisto. – Tentei e...

- Você é surdo, caralho? Sou mendiga não, arrombado. – Dessa vez ela fixou o olhar no meu.

Eram olhos grandes e esverdeados. Tinha algum resto de maquiagem no rosto e ao redor dos olhos, além das olheiras profundas.

Com a mão esquerda levemente tremida, ela jogou um pouco da água turva sobre a ferida de sangue seco do punho direito e os dedos. Fez o mesmo com a outra mão e tomou o resto da água escura.

Eu me levantei e saí, deixando o bauru sobre o balcão.

No final do quarteirão, não demorei mais do que três minutos na farmácia e quando entrei de novo na padaria o meu Bauru já não estava no balcão. Coloquei a sacolinha com gaze, esparadrapo e soro fisiológico sobre o balcão, ao lado dela e saí.

Retomei o caminho de volta ao apartamento.

- Bom dia, Seu Smith – cumprimentei o porteiro e parei.

- Bom dia – Ele respondeu simpático.

- Seu Smith, o senhor sabe, por acaso, quantos anos a Dona Alice lá do vinte tem?

- Olha, vou ser muito sincero, faz bem uns 15 anos que ela não desce. Tudo é de entrega pra ela. É comida, é lavanderia. Eu mesmo faz uns 13 anos que não vejo, mas isso, só porque uma vez eu tive que entregar eu mesmo uma conta dela. Ela mora aqui já faz uns 40 anos e já era de idade, então...Pra te ser sincero... Eu não sei. Mas é bastante, viu...

- Certo. Obrigado, Seu Smith.

Seu Smith se chamava Juvenal, mas ganhou o apelido no final dos anos 80, por se parecer muito com o Morrissey na época e por dividir com ele o gosto por topetes, que hoje, mesmo praticamente careca, faz questão de envolver os fios que restam numa onda e quando o síndico não está, deixa a camisa com dois botões abertos.

Na porta do meu apartamento, uma tupperware.

FIM – CAPÍTULO 01.

Entrecidades Kintsugi
Enviado por Entrecidades Kintsugi em 11/04/2019
Reeditado em 08/05/2019
Código do texto: T6620658
Classificação de conteúdo: seguro