Indigentes

Podiam ser ouvidas de muito longe, choros de criança, duas, três, quem sabe até quatro, ou talvez cinco, não sei dizer muito bem. Pareciam tristes e famintas. E eu não podia fazer nada. Apesar de tão próximo eu estava ao mesmo tempo tão longe. Distante por não saber onde estavam e o pior de tudo por não saber o que fazer.

Procurei pelas chaves por todo apartamento e só fui encontrar no lugar menos provável, a geladeira. Sim, meu molho de chaves estava metido dentro do refrigerador, enfiado dentro da gaveta dos legumes e esses já estavam cheirando azedo. Peguei tudo aquilo quase vomitando, botei dentro de uma sacola de mercado e joguei pela janela; foda-se, vizinho algum ia notar, aquele prédio era uma merda mesmo.

E os choros não paravam. Então sai pelo prédio a procurar. Passei na porta de outras residências e nenhum sinal de choro, muito menos de crianças. O que conseguia ouvir era somente o som das televisões ligadas e ver a sombra de pessoas andando dentro dos apartamentos, além do cheiro de carne, de frango e do feijão, jantares sendo preparados.

Desci as escadas correndo e quase cai. Tinham corrimão sim, no entanto a ferrugem estava comendo tudo e o risco daquilo tudo desmontar e causar um acidente pior era nítido. Luzes, barulho e carros. Gente jovem reunida. Todos de copo na mão com cigarros vagabundos enfiados em suas bocas, pobre juventude. O cheiro de esgoto era nauseante. Moleques de bermudas e bonés para trás, com óculos escuros na escuridão, pareciam até querer esconder seus olhares de olhares desavisados. As meninas usavam short curto e maquiagem carregada. Mostrar o corpo de curvas ainda não definidas seria a tarefa do dia, ou melhor, da noite.

Continuei ouvindo os choros e a cada vez que eu me aproximava deles mais forte, denso, triste e cruel eles ficavam. De longe vi um pedaço de lona. Caminhei na sua direção e os choros aumentaram. Percebi que vinham de lá e apressei o passo. O coração disparado. Ao chegar me abaixei, abri o que parecia ser uma porta feita também de lona; e vi ali três crianças, duas meninas e um menino, ao lado deles a mãe, morta. Entendia agora o motivo do choro.

Foi difícil para mim me deparar com tudo aquilo. A mulher deitada, morta, provavelmente um ataque cardíaco. Porém o mais duro foi ter que olhar para aqueles rostinhos sujos e sem esperança. Onde estava o pai delas? Na cadeia ou morto? Nem sabia o que pensar. Com as mãos tremidas digitei 190 no celular. Vinte minutos depois uma viatura surgiu de luzes apagadas.

Dois policias homens desceram do carro, ambos seguravam suas armas, parecia que naquele lugar havia criminosos, sim aquela era uma região bastante perigosa, mas que perigo três crianças e uma mulher morta fariam? Fiquei ali de braços cruzados só observando o trabalho deles. Um deles veio falar comigo, troquei algumas palavras, ganhei um aperto de mão, mas me entristeci quando ouvi o policial dizer que as crianças não tinham pai e agora com a mãe morta elas seriam encaminhadas para um orfanato e a mãe, pobre dela, sem documentos seria enterrada como indigente.

Ao ir embora comecei a pensar. Quantas pessoas iguais a essa mulher e a essas crianças passam por isso? Por que elas ficam invisíveis aos nossos olhos? Se não fossem pelo choro sofrido daqueles pequenos eu não saberia da existência deles. E quantas lágrimas ainda vão ser derramadas até terem uma vida digna de verdade? Vou dormir com essa questão na cabeça.

FIM!!!

Fernando F Camargo
Enviado por Fernando F Camargo em 02/04/2019
Reeditado em 03/04/2019
Código do texto: T6613908
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