BARFLY

Dado o adiantado da hora, quase duas da manhã, o bar estava praticamente vazio.

Há mais de três horas que Fernando ingeria devagar, copo atrás de copo, whisky de doze anos, o seu preferido. Ingeriu o resto da bebida e pediu outro whisky. O barman, Tom, recusou.

- Estás demasiado bêbado para beber mais. Anda, vou levar-te a casa. A Miriam fica a tomar conta do bar.

Ela olhou para o patrão e para o cliente, meio esparramado no balcão, com ar pesaroso. Detestava bêbados e paradoxalmente, trabalhava ali como empregada de mesa, vendo diariamente aquelas pungentes cenas.

Tom pegou no outro pelos sovacos e Fernando, desequilibrando-se, vomitou para o chão e sujou as calças de ambos.

- Raios te partam, bêbado de um raio!

O outro não respondeu, estava quase a desmaiar. Tom levou Fernando de arrastão pois o cliente era corpulento e já não dava acordo de si.

Miriam apressou-se a limpar o chão vomitado, irritada, perante os olhares reprovadores e divertidos dos poucos presentes.

Com dificuldade, Tom lá arrastou Fernando até à porta do prédio onde ele morava. Felizmente que o bêbado habitava a apenas seis portas de distância. Tocou à campainha, mas ninguém atendeu.

- É verdade, moras sozinho.

Tom lá conseguiu tirar o porta-chaves do bolso das calças do outro, deixando ainda cair algumas moedas no chão. Abriu a porta e carregou-o, arrastando-o pelas escadas acima até parar no patamar do primeiro andar, abriu a porta do apartamento de Fernando e despejou-o sobre um sofá cheio de jornais e almofadas imundas e meio rasgadas.

Quase tropeçou numa garrafa vazia, jogada sobre o tapete surrado. A sujidade era geral. A casa cheirava a bafio, a comida podre e a humidade, há muito tempo que não via faxina.

Tom abanou a cabeça, com um misto de pesar e nojo. Imaginar que o outro já tinha vivido bem, mas o álcool, misturado com o jogo, potenciados ainda pelo desgosto da separação da sua mulher Isaura, o tinham reduzido a um bêbado sem outro futuro que não fosse uma cirrose hepática.

A esposa dele tinha-se safo a tempo e apanhara o dinheiro que pudera em processo de divórcio, alegando maus tratos.

Agora, Fernando vivia de um pequeno rendimento dado por aplicações financeiras, que gastava nos bares, na renda da casa e pouco sobrava, a comida raramente era cozinhada em casa, alimentava-se em lanchonetes baratas e de higiene duvidosa ou com base em take away.

Depois de deixar Fernando a roncar no sofá, Tom regressou ao bar.

Miriam limpava cuidadosamente o balcão e depois, antes de sair, ainda iria lavar os copos que se amontoavam no lava-loiças.

- É uma tristeza, não é? – disse ela.

Tom respondeu: - É uma dor de alma, ver um homem que já viveu de modo razoável, ser agora um farrapo sem futuro. Sabes que já pensei em levá-lo aos AA? No entanto receio que ele reaja mal. Quase todos os viciados em álcool rejeitam tratamento, não reconhecem a doença e por vezes tornam-se muito violentos pois a bebida tolda-lhes o discernimento.

Miriam ficou pensativa: - Sabes? Este não é o único a parar por aqui, mas é de facto o mais antigo e não é má pessoa, apenas teve azar na vida…

- Azar e falta de juízo. Trabalho todos os dias com bebidas fortes e sempre as mantive à distância. E já casei e me divorciei duas vezes e não vesti de luto. A vida segue em frente, não devemos perder a ambição por dias melhores.

- Está bem, Tom, mas as pessoas não são todas iguais. Pelos vistos o Fernando é menos determinado do que tu, não vês?

Tom assentiu com a cabeça e concluiu:

- Amanhã vou falar com o meu amigo Carlos. Pode ser que ele leve Fernando a refletir e a experimentar assistir a uma sessão nos AA. Pelo menos tentámos, não achas?

- Claro, apesar de tudo, merece outra oportunidade.

BARFLY – Designação dada aos alcoólicos que passam a vida nos bares, dando largas ao vício da bebida, levando uma existência vazia e sem sentido.

AA - Alcoólicos Anónimos - Associação constituída quase sempre por voluntários que se devotam à correção do vício de beber sem controle, desgraçando a sua vida e da família.

Ferreira Estêvão
Enviado por Ferreira Estêvão em 02/04/2019
Reeditado em 03/04/2019
Código do texto: T6613904
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