Eu vou embora mais cedo

Ontem no terminal de embarque e desembarque de passageiros de ônibus coletivo urbano ganhei um presente...

- Oi, como vai o senhor? Viu se já saiu o São Dimas? E abri um sorriso.

- É comigo? A juventude de hoje, geralmente, não conversa com gente de idade mais avançada, estão apressadas demais para esperarem o nosso tempo. Além do mais, desde que cheguei aqui tenho visto que o povo anda meio nervoso, esgotado, este foi o primeiro sorriso que vi nos últimos 12 dias, na gratuidade. Pensei se tratar de engano...

- O senhor errou duas vezes, primeiro quanto à juventude, a maquiagem dusfarça bem (risos) depois quanto ao sorriso, eu rio até pra não chorar. Qual o seu nome?- perguntei-lhe estendendo a mão.

- Eu sou o Francisco, Chico Serra, lá de Almenara.

- E está passeando seu Francisco aqui na cidade do comércio ?

- Vim ver a minha filha, dentista. Coitada, sem tempo. O pessoal de hoje vende as horas e quando, ainda. sobra alguma eles alugam ou emprestam. Mas doar... Quase não vejo.

- Coisas da modernidade seu Francisco, coisas da cidade... Todo mundo correndo atrás da tal felicidade. E como tem gente infeliz, não é?

- E não é verdade? Gente feliz é diferente... Gente feliz não tem tempo pra fofocar sobre a vida dos outros; gente feliz não cobra presença, mas fala de saudade; gente feliz desliga o celular na hora do jantar e "topa" com os outros; gente feliz não ri pra esses celulares cada vez mais pequenos e mais escravizantes ( libertaram os negros da senzala e prenderam os brancos em casa, até a pizza é em casa? Eu sou do tempo que comer era q desculpa pra sair juntos. Mas hoje, com essa facilidade de comunicar tudo mudou. Olha esse tal de "waltersaper", o bicho tem feito inimigo viu?

- Não entendi...

- Esse negócio que este povo novo faz no celular que vira até inimizade só por conta da facilidade de "criar" grupos e inserir pessoas, principalmente, para vender e comprar e os pobres de coração se ofendem quando alguém quer sair. Você é obrigado a entrar e ficar... Vivemos a era das emoções só diante da tv, do celular e do computador, mas da falta de sensibilidade entre as pessoas, a olho nu, frente a frente. Viu aquela moça ali com a criança no colo pedindo ajuda? Pois é, aquilo que está comendo, pegou naquela lixeira do lado, mas ninguém viu e os que assistiram só teceram juízos de valor. Está todo mundo olhando pra tela do celular. Haja coluna, pescoço , visão pra tanto vício.

- É verdade. Tanta gente querendo se encontrar...

- Na verdade, tanta gente perdida nesta ilusão que torna impossível encontrar com si mesmo. Olha ao seu redor, quantos passaram por aqui? Conte os que estavam de mãos livres, sem prisões? Os que te olharam nos olhos... Por isso que digo, as pessoas estudam cada vez mais e "vivem" cada vez menos. Aumentou a expectativa de vida, tem remédio pra quase tudo (e todo mundo anda doente, se sair perguntando aqui um a cada 8 não tomam). Ontem mesmo minha filha saiu as 6 pra academia, as sete e pouco levou o filho na escola , as 8 foi pro consultório, as 13 voltou para engolir a comida, as 18 chegou, tomou banho e foi prum curso, e as 23 voltou pra dormir. Não tivemos tempo de trocar umas frases soltas, sequer, porque a "vida" a consome. Hoje perguntei se era feliz e ela meio sem saber o porquê disse que estava cansada, mas sim. Foi aí que vi que vi que a felicidade dela era uma ocupação e que nem tinha tempo de se revelar num sorriso, num minito de "inutilidade ".

- São as escolhas que fazemos em nome dessa competição pra ocupar um lugar no espaço, na vida, no coração das pessoas. Estamos carentes, sabe-se lá do que...

- Por isso decidi voltar antes do tempo. Deixei um bilhete dizendo que a amo, mas que as horas aqui passam muito rápido mesmo e que preferia voltar pra Almenara pra acordar com o sino e jogar cartas na praça a tarde. Ser feliz aqui é exigente. Gosto do momento da inutilidade que aqui não cabe, enrolar um cigarro, dar comida pras galinhas, ir ao mercado, jogar conversa fora.

- Oh, meu ônibus, desculpe. Foi um prazer.

- Qual o seu nome? Perguntou sorrindo.

- Mônica, aquela que abraça o elefante da propaganda de massa de tomate.

- Era só pra reforçar, pois, eu já sabia. Todos que por aqui passaram a chamaram pelo nome e isto só fazem com quem revela sua identidade...

- Não vou me esquecer do senhor, da sua história de vida.

- Eu é que não vou esquecer que você me ouviu. As vezes, nesse tumulto todo, é só isso que buscamos, esperamos, sentimos. Vai com Deus!

OBS: O nome, a cidade e outros dados dos personagens são fictícios porque algumas histórias precisam viver mesmo em nosso coração, e guardar o sigilo da vida real que é uma eterna viagem.

E foi assim que ganhei o dia e perdi várias noites.. #prarefletir

Mônica Cordeiro
Enviado por Mônica Cordeiro em 31/03/2019
Código do texto: T6612207
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2019. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.