Lavagem

Todo mundo está fugindo de alguma coisa.

Alguns fogem de seu passado. Eles buscam começar uma nova vida assumindo uma identidade diferente em uma cidade desconhecida. Outros fogem dos compromissos, afundando-se no fundo de um copo de uísque.

Eu estou fugindo da lavanderia.

Foi culpa minha. Mesmo. Eu deixei acumular durante semanas, comendo em panelas quando os pratos estavam sujos e depois nos pacotes quando não restavam panelas. Eu sobrevivi em restaurantes na última semana, acumulando uma pilha de lixo ao lado da montanha de porcelana e metal.

Se eu tivesse lidado apenas com uma tigela e colher por vez, eu não seria confrontado diariamente, ao chegar do trabalho, com uma tarefa tão intransponível. Estou lidando com isso desde o dia em que sai da casa dos meus pais. Lá, era diferente. Era como mágica.

Mais tarde, ainda não conseguia encarar a pilha de louças, então deixei meu apartamento e sai para comer. Eu não jantava fora frequentemente — Fui convidado em poucas oportunidades por colegas de trabalho, mas nunca aprendi a comer em público sozinho. Não deve ser tão difícil, imaginei.

Eu sou um lobo solitário fresco, tão confiante quanto um defunto. Mas eu estava com fome, e com utensílios limitados em casa. Bravamente, atravessei o tempo chuvoso do anoitecer, enfrentando o vento gélido e ameaçador, em direção ao restaurante mais próximo.

Foi uma noite Agradável no "Jantares & Sobremesas". Todos ao meu redor pareciam felizes e animados. Todos estavam conversando com seus colegas. Não há nada melhor, pensei, conversar futilidades e esquecer os problemas que nos afligem. Por mais simples que fosse, a noite acabou bem. Serena e Revigorante. Percebi que meu isolamento social havia me privado de bons momentos como esse.

— Oh, meu deus, a quanto tempo não nos vemos! — A garçonete exclamou.

— Oh, er... sim, quanto tempo. — Resmunguei em resposta. Ela podia ver minhas bochechas avermelhadas.

Ela estava usando um crachá: "Cíntia". Fora uma namorada de faculdade. Cabelos escuros — Ela havia cortado, deixado bem curto — Olhos Castanhos claros. Estava com um semblante abatido, talvez cansada, mesmo assim, linda.

— Então ... — Ela começou. — Você está morando pelas redondezas?

— Sim, a duas quadras. Tenho um apartamento no sétimo andar de um condomínio onde só residem idosos e gatos. Muito tranquilo. — Respondi.

Cintia sentou-se, pegando um cardápio no caminho.

— Posso trazer alguma coisa para beber, uma saideira? — Ela perguntou, tirando o bloco de pedidos do bolso. Ela me observara à noite toda.

— Oh, er — pigarrei um pouco. Estou tentando ficar longe do álcool.— uma xícara de Café, seria ótima.

— Ok — Ela respondeu enquanto rabiscou no bloco, antes de se virar e ir embora.

Olhei para o cardápio e tentei não tremer a perna. Eu deveria aproveitar e sair daqui o mais rápido possível. Eu não paguei a conta ainda. Droga! Pensei.

Diagonalmente ela se aproximava com duas xícaras, mas eu só pedi uma.

— Oh, Deus... — Ela não me deixou concluir.

— A outra é minha. Não se preocupe! — Concluiu.

Eu estava apavorado quando Cíntia sentou-se e, com a xícara na altura do queixo, exclamou — Nossa, você está um caco!. Uma cidade asteca!

Eu sorri. Completamento atordoado. As únicas mulheres com quem converso há seis anos — Desde a faculdade — são mulheres comprometidas, Além das adoráveis senhoras do prédio.

— Você não fala muito, não é? Isso era bom e ruim quando namorávamos.— A primeira tentativa de puxar assunto.

— Desculpe — Eu estava em pânico, — Bom faz tanto tempo...

— Eu sei que você me notou antes — Ela fala. — Se eu não tomasse iniciativa, você passaria em branco, não é? — Ela perguntou.

Eu sempre fui estranho. Desde o primário, minha interação com garotas era desastrosa, pra não dizer nula. Mas, aqui, sentado nesta cadeira, tudo o que tinha de fazer era criar uma linha de abertura. Mostrar que estava afim de conversar. Eu estava cercado por pessoas que estavam apenas vivendo um dia normal de suas vidas. Enquanto, pra mim, isso era incomum. O fato de estar aqui rodeado de pessoas, ter uma mulher linda na minha frente querendo conversar, fez eu lembrar como eu estava descuidado com a aparência, nem um pouco atraente. Eu deixara minha barba e cabelos crescerem, usava óculos enormes e não tomava banho há três dias. Pense! Ande, Vamos. Pense em algo interessante para dizer a ela!

— Então, o que tem feito, desde... você sabe... desde o término? — Finalmente!

— Bem, fiz umas escolhas erradas. Sabe, daquelas que não têm volta. Estava desesperada até conseguir um trabalho temporário aqui. O pessoal é bacana.

—... com certeza, há muitos ovos no cardápio. — Resmunguei.

— O quê?

— Não, nada. Quer dizer, A vida não é fácil pra ninguém... Lá — Apontei, de repente, para um mendigo do outro lado da rua — Ele tem uma vida inteira de frustrações e angustias para compartilhar, mas quem está disposto a ouvi-lo?

Ficamos pensativos. Durante um tempo considerável. Talvez eu tenha ido longe demais com esse papo existencialista de merda.

— Tem razão — Ela afirma. — Nós erramos feio em desistirmos um do outro.

— Você acha? — Eu pergunto. — Acredito que... — Ela me interrompe.

— Foi algo bobo. Juvenil. Éramos jovens e... Iniciantes. Travamos uma guerra. Talvez você tivesse razão: o aborto foi a melhor opção. M-mas... Era nosso filho. Fruto do nosso Amor. Eu queria ter o controle da situação, mas você foi incisivo demais. Tirou meu espaço. Mas eu fui muito dura com você. Não deveria ter falado aquelas coisas, naquele tom. Acabei extrapolando. — Ela desabafa e desaba em prantos.

Ela empurra a cadeira para trás, levanta-se e parte, levando consigo uma parte de mim.

Viramos o centro das atenções. Eu fiquei ali. Inerte. Até ir embora. Como o covarde que sempre fui. Um filhinho de papai arrogante metido a sabe-tudo. Tudo começou com uma pilha de pratos sujos, e minha procrastinação exacerbada. A dimensão exata de quão fraca e desinteressante era minha personalidade era assombrosa. Todas as minhas atitudes na situação foram uma demonstração poderosa de mediocridade. Eu tenho sido uma decepção constante e completa para todos, especialmente para mim mesmo. Tudo pela necessidade equivocada e egoísta de forçar um aborto.

Eu passei a esponja pela boca de outra tigela. Isso foi mais fácil do que imaginei. Até organizei as panelas por tamanho e as xícaras por cor. Era uma visão tão linda, tantas xícaras, pratos, facas e garfos limpos.

Eu realmente fiz bem essa lavagem, pensei.

FIM.

Fausto Carrara
Enviado por Fausto Carrara em 31/03/2019
Reeditado em 06/12/2020
Código do texto: T6611852
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