Conto das terças-feiras – O entregador de água
Gilberto Carvalho Pereira, Fortaleza, CE, 19/03/2019.
Certo dia solicitei ao mercadinho, por telefone, um garrafão de 20 litros de água mineral, para ser usado em um “gelágua”, que fica localizado na cozinha. Espantou-me a rapidez com que fui atendido. Menos de vinte minutos fui avisado pelo porteiro que o rapaz da água estava lá embaixo, mandei-o subir. E fui esperá-lo já com a porta aberta. Um garoto de seus 18 anos, magro, negro, sorridente e não aparentando cansaço.
— Bom dia, desejou-me ele.
— Bom dia, respondi, pedindo-lhe que entrasse e colocasse o garrafão na pia, para ser lavado e passado o álcool, fornecido pelo distribuidor.
Depois de terminado o seu serviço ofereci-lhe um copo de suco que ele agradeceu e bebeu. Percebi a educação do garoto, na gentileza de perguntar se poderia lavar o copo no que concordei.
Uma curiosidade se abateu sobre mim, a de saber mais sobre aquela figura alegre e respeitosa que estava ali na minha frente.
— Você mora aqui por perto?
— Não, moro do outro lado da cidade!
— Mas lá por onde você mora não tem depósito de entrega de água?
— Tem sim, mas eu prefiro trabalhar por aqui. Lá tem muita gente que não presta, que pode até me roubar a bicicleta, o garrafão e o dinheiro que levo, disse ele de cabeça baixa.
— Você estuda?
— Sim, faço o terceiro semestre na faculdade de direito, estudo à noite. – Não citou o nome da faculdade porque devia ser uma caça-níquel, dessas que cobram pouco dos alunos, desde que paguem.
— E o que você ganha com esse trabalho dá para pagar a mensalidade?
— Tenho bolsa, esse dinheiro é só para eu comprar livros e pegar ônibus.
Notei que ele era bem articulado, se expressava muito bem. Procurando tirar mais daquele garoto, que parecia entusiasmado com a vida, continuei com minhas indagações.
— Você parece que gosta de ler, quais os assuntos de sua preferência?
— Gosto de história universal, de filosofia, leio sobre alguns homens que contribuíram para o conhecimento atual, falou o garoto.
Para experimentar se aquilo que ele estava dizendo era verdade, arrisquei-me, sem ser instigante perguntei:
— Então você já leu Nietzsche? Quais outros você já leu?
Sem pensar muito ele respondeu:
— “As convicções são inimigas mais perigosas da verdade do que as mentiras”.
Eu fiquei perplexo, embora não tivesse conhecimento dessa frase, eu sabia que ele estava citando Friedrich Nietzsche, tal a convicção com que ele a pronunciou. Ele continuou explicando-me:
— Friedrich Nietzsche foi um filósofo, poeta e crítico cultural, nascido na Alemanha no século XIX. Morreu em 1900.
Sem dar-me por satisfeito perguntei se ele tinha lido mais algum filósofo.
— Sim, Bertrand Russell, viveu no século XX. Matemático dos mais brilhantes, filósofo e lógico. Morreu em 1970 e sua frase que mais gosto diz respeito ao conhecimento. Segundo ele, “Aquilo que os homens de fato querem não é o conhecimento, mas a certeza.” Tem também Schopenhauer, que escreveu “O mundo como vontade e representação", em que ele caracteriza o mundo fenomenal como o produto de uma cega, insaciável e maligna vontade metafísica. Uma das suas frases caracteriza muito os dias de hoje, embora tenha morrido em 1860: “Dinheiro é como água do mar: quanto mais você toma, maior é sua sede. O mesmo se aplica à fama.”.
Eu, boquiaberto, sentei-me e fiquei admirando aquele garoto, um leitor voraz, travestido de entregador de água. Ele quis continuar nossa conversa, já passava das 13 horas e ele ali, sem ostentação, por certo com fome, a tentar explicar que as aparências enganam, enquanto um sorriso de alegria continuava estampado em seu rosto. Isso me despertou grande admiração por ele. Fui até à minha estante, onde guardo alguns livros que li e havia gostado e passei para as suas mãos. O que ele me disse foi: quando eu acabar de lê-los, devolvo.
Eu não disse mais nada.