Uma voz que clama

“Ponha fogo no seu sermão ou ponha seu sermão no fogo. ”

John Wesley

Enquanto fazia o discurso dominical os fiéis permaneciam boquiabertos. Não estavam habituados a ouvir, de segunda a sábado, maravilhas como aquela. O padre, na ponta dos pés, lançava para a frente o seu corpo e sua voz. Era um homem alto, calvo e de aprazível sorriso. Fazia um gesto acolhedor e bradava:

-Se nós humanos sentimos amor, qual o tamanho do amor de Deus?

Toda a primeira fila composta de idosos e a segunda e a terceira compostas de catequizandos e solteironas ficavam com essa ideia na cabeça como uma nova e sublime aura, que poderia significar o seguinte: estamos mergulhados em um mar de amor do qual emergimos apenas para respirar a nossa breve humanidade. O padre, olhando os rostos de seus ouvintes, contentava-se e ia em frente:

-Sabendo que Deus nos ama, só o pecado nos impede de amá-lo!

Até à última fileira de bancos todos permaneciam maravilhados. Homens de meia idade e donas de casa com seus alvos vestidos de domingo suspiravam aliviados porque descobriram nesse padre um sermão novo e, no sermão, uma vida nova. O padre, dando a volta no altar, lançava-lhes a frase simples:

-Querem ver a Deus? Olhem para os lados!

Mulheres, homens e crianças arriscavam um fortuito olhar para o lado. Viam os rostos conhecidos de todos os domingos. Esses rostos estavam transfigurados pelas palavras do reverendo e traziam neles uma bondade colada à pele que, dependendo da fé de cada um, duraria mais ou menos uma semana. O padre concluía:

-Voltem para suas casas como vieram aqui! Cheios de esperança!

Assim que terminou a missa dirigiu-se suavemente para a entrada da igreja. Despedia-se de todos. Às vezes, um simples olhar, um aperto de mão ou um tapinha no ombro fazia com que os fiéis fossem embora já pensando em voltar. Teve um sobressalto ao intuir que faltava alguém. Limpou o suor da testa enquanto dirigia-se para a casa paroquial. Monologava:

-Onde procurar, Senhor, a ovelha perdida?

Antes mesmo que as palavras pudessem repercutir pelo ar e ganhar cor, luz e corpo, o padre viu a imagem descolorida que avançava pelas laterais da igreja. Teve um estremecimento quando conseguiu enxergar melhor e viu que a moça se aproximava devagar. Tão devagar que aquele sangue que escorria das pernas parecia mais ligeiro que ela. A cabeça do padre rodou, as pernas tremiam, mas o coração estava forte como uma palmeira. Pensou em abrir a boca, mas a moça foi mais rápida:

-Padre... me diz! Onde está Deus agora?

A pergunta da moça o pegou desprevenido, mas sua presença não. O padre viu, ali a sua frente, uma vida que se esvaía pelas pernas e uma outra que estava em vias de se perder. Então, adiantou-se na direção da vida viva e a abraçou. Conduziu-a cuidadosamente para a varanda. Chamou o caseiro e pediu água. O caseiro voltou com um copo d’agua e um telefone. Entregou a eles. O padre, sem palavras, aproximou-se dela e balbuciou uma possível resposta:

-Aqui! Aqui conosco. Ele tem que estar!

Ajoelhou-se ao lado da moça. Ligou para a emergência enquanto enxugava suas lágrimas. Ela recostou a cabeça no ombro dele e, por um instante, ao vislumbrar o jardim bem cuidado da casa paroquial pensou que tudo ficaria bem de novo. No entanto, dores cruéis a faziam estremecer a todo momento. A cada estremecimento dela ele também sentia uma espécie de medo e desconforto invadir o seu ser. Assim, ficaram abraçados ouvindo a sirene da ambulância que se aproximava. Vez por outra soluçavam alto.

make
Enviado por make em 10/03/2019
Reeditado em 10/03/2019
Código do texto: T6594611
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2019. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.