Um Salto na Avenida

Isabela chorava de dor e desilusão. Seus sonhos construídos dia a dia, semana após semana seriam esfacelados por conta de um serviço mal feito? Por sabotagem? Talvez, mas a verdade é que nada tinha sido fácil até ali e, por uma trama do destino, o infortúnio que batia em sua porta poderia ser uma grande oportunidade.

O ano era 2000, o ano da virada, a chegada de uma nova era. Espaçonaves não eram vistas nas ruas e ainda não se podia comunicar mentalmente com as pessoas, mas as coisas estavam bem tecnológicas. Isso podia ser atestado nos celulares, nas televisões e em outras engenhocas lançadas durante os carnavais.

O barracão funcionava a mil por hora, 24/7 e nada nem ninguém abalaria o espírito daquelas pessoas que trabalhavam com paixão em cada detalhe das estruturas das alegorias e fantasias, muito menos o princípio de incêndio que ameaçou transformar em cinzas um ano inteirinho de trabalho duro.

Era um mundo mágico orquestrado por um carnavalesco super conceituado e ganhador de outros carnavais, ainda que em escolas diferentes. Essa seria a vez de sua agremiação, com certeza! O samba estava impecável. Mestre Dingo ensaiava exaustivamente a coreografia. As paradinhas e o recuo arrepiariam até os pés de chumbo e corações de pedra. Uma nova rainha de bateria foi apresentada, deixando todos boquiabertos com sua gentileza e desenvoltura, ainda mais por se tratar da atriz famosa que era. A única pessoa que não estava feliz era a mãe de Isabela.

Dona Carmen da Silva carregava a responsabilidade de três estandartes de ouro nas costas, fruto de sua parceria com o marido, o mestre sala Marcinho. Era o casal vinte da escola, o par perfeito e ideal de casamento de muitos namorados da comunidade. Só que não. O que aparentavam para os membros da escola estava muito distante da realidade conturbada em que viviam. Isabela sabia muito bem o estrago que o alcoolismo podia fazer em uma família, mas pelo seu bem e da escola, sua mãe aguentara tudo calada.

Carmen e Marcinho se conheciam desde crianças e a interação dos dois era notória. Eram produtos do meio. Como a cerveja para o torresmo e o feijão para a farofa, foram forjados e conduzidos desde a tenra idade ao estrelato da escola. A gravidez de Carmen - aos quinze anos - não foi nada surpreendente e Isabela cresceu como.

todos os filhos e filhas da Escola, embalada por todos ao som melódico das cuícas. Seu pai, no entanto, não soube lidar com a fama precoce e ascendente. A cada estandarte as entrevistas se tornavam mais do que aguardadas e os convites para mostrar sua arte no exterior também.

Carmen, no entanto, reluzia como o sol a iluminar todos ao redor, levando a escola em seu peito e sorriso aonde quer que fosse, enquanto Marcinho se deslumbrava com a paparicação de momento que passaria logo na Quaresma, tornando-o novamente esquecido antes do dia das mães.

Quem gerenciava os ganhos da família era Carmen. Ninguém sabia, mas ela investia cada centavo em uma poupança, sonhando com um futuro diferente para a filha, bem longe da comunidade. Marcinho, entretanto, estourava o que podia e o que não tinha em carros, cordões de ouro e muita... bebida.

Marcinho morreu de cirrose aos 35 anos. Foi um enterro lindo. A agremiação toda estava no cemitério do Cajú. Contudo, a fama não lhe reservou uma lápide onde pudesse ostentar a bandeira da escola e a do seu time preferido. Apenas uma foto colorida beijando o brasão da agremiação em uma moldura dourada, foi presa com cimento em uma pobre gaveta pintada com cal.

Carmen não sorriu mais, não dançou mais. Parecia uma idosa aos 35 anos. Seu legado deveria ser herdado por Isabela que passaria de segunda porta bandeira a ocupar o lugar de sua mãe. Mas quem seria seu parceiro? Muitos se aventuraram ao cargo, contudo ninguém atingiu a maestria de Marcinho, e a ideia acabou sendo abortada. Naquele ano a terceira porta bandeira tomaria o lugar da primeira, e isso agradara muito a Carmen. Isabela seria a primeira passista. Disso ela daria conta. Era o que Carmen e Isabela achavam, mas a concorrência era grande e com o posto vago, todas queriam alçar o frágil estrelato.

 O grande dia tinha chegado. Suor e lágrimas de emoção pulsavam e derretiam a maquiagem cuidadosamente elaborada em uma tenda refrigerada, próxima ao camarote do “zoólogo” patrocinador e patrono da escola. O esquenta deu o tom e os fogos pipocavam iluminando o céu negro do sábado de 40°C. Mestre Dingo estava possuído e entrou com tudo na avenida, certo de que levaria o estandarte de ouro para casa. Isabela estava nervosa. Tudo tinha que dar certo em sua estreia. Seria a vez das mulheres Silva.

Após a comissão de frente e o carro abre alas, viria a primeira porta bandeira e depois Isabela surpreenderia a todos em frente aos jurados metodicamente escolhidos.Tudo tinha sido conferido e ensaiado inúmeras vezes devido ao mecanismo inovador que prometia extasiar a plateia, o juri e entrar para a história da Sapucaí.

A beldade cor de jambo, exibia um corpo esculturalmente trabalhado para ostentar a fantasia da Fênix do Infinito, com performance exuberante, tal qual uma ave encantadora e encantada que vinha para incendiar a avenida. Em uma paradinha estratégica do mestre Dingo, Isabela aproveitou para se agachar ligando o dispositivo preso aos saltos do sapato. A passista então alçou um voo suave, elevando-se centímetros e depois a dois metros do solo. Ouviu-se um “Ohhhh” de espanto e admiração. Entretanto, talvez realmente exista alguma coisa de surreal na avenida, algo que mexe com os sentidos e invoca o desconhecido em dias de Carnaval. Alguns diriam que foi o demônio, outros que foi o espírito enciumado de Marcinho, mas o que podia dar errado deu. Isabela, empolgada como o pai era, não se contentou em apenas flutuar e gesticular como um cisne e quis  sambar no ar. Seu salto acabou por se desprender do dispositivo e sua queda foi es.pe.ta.cu.lar!

Ninguém parou. Apenas uma clareira se formou ao redor da passista caída, como se fosse um rio contornando a pedra no meio do caminho. Uma maca conduzida por dois bombeiros diligentes entrou e saiu rapidamente com a moça que gritava e dor enquanto acenava todo seu desencanto e frustração em um adeus definitivo.

Apesar da fratura exposta e da caríssima engenhoca tecnológica ter desaparecido do meio da avenida, foi um show para não se esquecer por muito tempo. Isabela tinha ficado famosa, ainda que resultando numa situação trágica. Dona Carmen sentiu remorso no coração, mas aquela foi a unica chance concedida pelos céus.

A bateria levou o estandarte de ouro e a comissão de frente também. A recuperação de Isabela seria demorada e, infelizmente a carreira de passista estava acabada, mas as entrevistas e capas de revista lhe renderiam uma soma que engordaria a poupança e os sonhos de Dona Carmen. Quando esse período passasse, as duas se mudariam para outra cidade. Suas vidas teriam um novo enredo, onde o Carnaval, com suas alegrias e dores, não faria mais parte.

Fim

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Rose Paz
Enviado por Rose Paz em 06/03/2019
Reeditado em 21/05/2021
Código do texto: T6590985
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