Juliano de Sousa Horst
Juliano de Sousa Horst
De Herculano de Lima Einloft Neto.
Rio de Janeiro, RJ, Brasil, 2019.
Juliano de Sousa Horst andava pelo Rio de Janeiro, conhecia a Zona Sul e parte da Zona Norte tão bem que a cada trecho recordava tudo o que ali tinha funcionado desde os tempos de menino. Se as mudanças o incomodavam, ele sabia que a geografia básica dos bairros da cidade se mantinha estável, e ancestral, e com esse pensamento, Horst se tranquilizava. Sabia também o quanto os turistas marcavam presença na Zona Sul, e os sinais pelos quais os cariocas se reconheciam em linguagem, de forma semelhante aos maçons. Horst era alto, com cerca de 1,93m, era corpulento, e usava óculos, tendo seis graus de miopia em cada um de seus dois olhos. Seu cabelo era preto e ondulado, e os seus olhos castanhos escuros. Horst era escritor amador, especializado em contos de ficção. Artur Azevedo e Lima Barreto eram referências importantes, para ele. Saltou do ônibus e se dirigiu ao prédio com fachada de pedra na Rua Barão da Torre, entre as praças Nossa Senhora da Paz e General Osório. Tocou o interfone, vou ao 302, apartamento de Mariana, disse. Lembrava das razões pelas quais estava ali, pensava na semana anterior, enquanto o elevador subia. Esperava encontrar Mariana Neves sozinha, e ela o recebeu na porta, precisavam tratar de assunto meio importante, uma viagem se apresentava para ambos, decerto que não para longe mas a ocasião pedia a atitude. Uma casa estava vaga na região serrana do RJ, em São Pedro da Serra, distrito de Nova Friburgo, e durante toda a sua vida Juliano tinha considerado aquele refúgio serrano à disposição, mas a burocracia do arranjo de um chalé ou casa conveniente não possibilitara a volta constante.
-- Meu primo Joaquim vai viajar para fora e a casa em São Pedro da Serra vai estar livre por quinze dias, nós temos de aproveitar. -- foi dizendo.
De forma surpreendente, Mariana Neves não ofereceu muita resistência, sabia que um convite nessas condições representava certa responsabilidade para o namorado. Havia meses que vinham saindo esporadicamente, sua confiança nele aumentava diariamente, e o que quer que fosse que desse errado seria creditado a ele. Horst decidiu dirigir, conhecia alguma coisa da estrada, em verdade uma bela estrada, com verdes paisagens, com árvores e montes campestres de lado a lado. Gostava de utilizar os transportes coletivos, mas a direção de um carro, um Nissan Tiida sedã prata, lhe era habilidade útil. Se lembrou de suas experiências no mundo serrano, a temperatura amena da serra, e as pousadas às beiras de rio(s). A praça de Lumiar até parecia menor depois de alguns anos, e o asfaltamento da estrada para Boa Esperança anos atrás, já percebido nas visitas anteriores de Horst a Boa Esperança, tinha sido uma coisa surpreendente, e os habitantes serranos decerto se satisfizeram com tal medida administrativa. Se lembrava das caminhadas à noite de Lumiar para Boa Esperança, no escuro, com um tanto de cerveja e destilados no corpo. Perfazendo o trajeto de carro outra vez após a idade adulta, se deu conta mais uma vez de que a distância realmente não era pouca para um fim de noite. Desde havia tempo, Horst conscientemente escolhia não consumir bebidas alcoólicas, especialmente quando estava trabalhando em seus textos, e nos períodos ou semanas antes e depois de trabalhar em seus textos. Os eventos recentes de calamidade trazida pela chuva tinham o assustado sobremaneira, mas conversando com um friburguense no Rio de Janeiro soube que os distritos fora o central tinham sido menos afetados. A chuva costuma cair forte e repentina na estrada entre Nova Friburgo e Rio de Janeiro, e isso era mais um fator a considerar.
O ar da serra era ideal para ler e escrever na natureza, Horst levava alguns livros e o computador, e um pen drive USB de memória flash para cópias de segurança. Escrever digitando ao computador naquele ambiente seria bom, ouvindo o silêncio, e até mesmo de vez em quando os sapos e grilos que se manifestavam à noite. Passaram na estrada e viram a ponte que leva à vereda do alambique, e chegaram à casa em São Pedro da Serra pelas cinco da tarde. Mariana parecia feliz com o planejamento. Horst recordava as mulheres que tinha em lembrança relacionadas àquele refúgio onde prevalecia a colonização suiça. Foram logo para Boa Esperança, para o velho bar e sinuca à beira do Poço Belo. Em conversa com o proprietário, Sr. José, se soube que algumas famílias alemãs tinham vindo nos últimos anos ali se estabelecerem, em propriedades construídas no que antes tinha sido plantações de cana. A internete em banda larga estava disponível nos distritos de Nova Friburgo desde havia tempo.
-- A tranquilidade aqui é a mesma, e desde que essa leva de famílias chegou, não parece muita coisa ter mudado. Vivem em propriedades de médio porte, usam computadores e não parecem querer incomodar ninguém. Vieram cerca de quinze famílias, mais ou menos sessenta pessoas, especialmente da região de Renânia-Palatinado. São dedicados no estudo de língua portuguesa do Brasil. -- disse Seu José.
Juliano de Sousa Horst bem sabia, os seus predecessores Horst também eram originários dessa região. As famílias de Nova Friburgo eram em geral teutas ou germânicas também, e Juliano de Sousa Horst descendia por vias femininas de linhagens masculinas luso-brasileiras, os Sousa, Lima, Ferreira, Pereira, Andrade, Garcia, Carneiro, dos Santos, Monteiro, Silva, Peixoto, Medeiros, Raposo, Alves, Pedroso, etc.; seus antepassados Horst tinham imigrado há 162 anos de Enkirch an der Mosel, Kreis Zell, Província do Reno da Prússia, para o Rio Grande do Sul, Brasil, em 1857. O bisavô de Juliano de Sousa Horst, Leopoldo Guilherme Horst, n. 1885, tinha sido sócio de uma serraria de madeira em Porto Alegre, na rua Voluntários da Pátria, junto com os irmãos de Leopoldo Guilherme Horst, Carlos Henrique Horst, n. 1874 e Albino Horst, n. 1883, serraria essa que teve origem em um depósito de madeira do trisavô de Juliano de Sousa Horst, Guilherme Horst. O tetravô de Juliano de Sousa Horst, Henrique Horst, imigrante com sua esposa e filhos, se dedicara a agricultura e exercera sua profissão de pedreiro. O avô paterno de Juliano de Sousa Horst, de mesmo nome Juliano de Sousa Horst, fora fiscal no Rio Grande do Sul. O pai de Juliano de Sousa Horst, João de Medeiros Horst, era Engenheiro Elétrico, graduado na UFRGS. Enquanto considerava os fatos, surgiu pela estrada de terra um Passat marrom, e pôde ver dois homens da parte de dentro, enquanto o veículo desacelerava e estacionava próximo ao bar. O saudaram com um aceno e foram ter com Seu José. Um engradado de guaraná, para as crianças, talvez, foi o que compraram, e logo partiram rumo a Boa Esperança de Cima. Após tão singelo evento resolveu o casal carioca ir de carro até Lumiar para um passeio. Horst se lembrava de um bar que havia naquela estrada, no passado, da curva da estrada, e do quanto podia ser interessante uma caminhada a dois por ali, e mais uma vez maldisse em pensamento o medo que as chuvas tinham trazido.
A estrada de Boa Esperança para Lumiar no passado, de terra batida, com um rio ao lado, ainda persistia em sua memória, mesmo ele já tendo visitado a região depois do asfaltamento várias vezes, e o asfaltamento não tinha modificado as encostas verdes à esquerda que iam dar na margem direita do rio. As curvas tortuosas deixavam ver trechos de belas árvores em entradas de mato fechado à direita. Juliano de Sousa Horst tinha trinta e oito anos de idade e estava bem estabelecido, vivia por rendas razoáveis e planejava ter filhos com Mariana Neves, que não se opunha à ideia. Mariana Neves tinha vinte e sete anos, e ambos compartilhavam um interesse em literatura e história. Tinham se conhecido na biblioteca da PUC-RJ, quando Juliano de Sousa Horst, já graduado como Engenheiro de Computação pela PUC-RJ, lá comparecia para consultar como ex-aluno, e o silêncio bibliotecal fora de fato um obstáculo difícil de transpor, coisa somente possível no corredor e antessala de acesso. Hoje em dia liam muito por computador e internete, e as idas àquela biblioteca tinham rareado.
Chegaram à noite à praça de Lumiar, sempre movimentada, com bom fluxo de gentes e boa quantidade de bares abertos. Entraram em um e pediram duas águas, o casal carioca. Horst tinha estado ali esporadicamente ao longo da vida, e Mariana Neves conhecia a região de passagem. Eram em verdade pessoas reservadas, desconfiadas, mas sempre gentis, e foram bem recebidos pela localidade, bondade perceptível nos detalhes, no atendimento, na hospitalidade discreta. Uma televisão estava sintonizada no telejornal da noite, e a clientela tecia comentários sobre o noticiário. Notaram um outro casal mais ao lado que lhes pareceu simpático, e com o tempo puderam lentamente ir trocando pequenos comentários e sinais, até que a conversa se entabulou. O homem tinha mais ou menos trinta e dois anos, e da mesma forma a mulher; eram locais de Nova Friburgo, sempre em trânsito entre a cidade e os distritos.
-- Vocês são do Rio de Janeiro então? É sempre bom receber cariocas, desde a chuva o movimento diminuiu muito. Eu sou Fernando, ela é Marta. -- disse o homem.
-- Somos, sim, eu sou Juliano, ela é Mariana, pois é, a chuva, coisa terrível. E ainda mais sabendo da recente imigração para os distritos em Boa Esperança. -- respondeu Horst.
-- Mas nesse respeito a tragédia não foi tão grande, esses distritos quase não foram afetados e as famílias recentemente friburguenses não sofreram com a tragédia mais do que alguma saudade do sol por alguns dias, e talvez a queda temporária das linhas de telefone e internete.
A tendência migratória contínua dava certa satisfação a Horst, por saber que aqueles que ali vinham se estabelecer eram seus parentes por linhagem. Seu fascínio por Nova Friburgo começara cedo, e era apreciador do clima frio, ou fresco, que a serra proporcionava. Especialmente no verão carioca subir a serra de Nova Friburgo era uma atitude que aliviava os sentidos. Voltaram para a casa em São Pedro da Serra por volta de vinte e uma horas.
No dia seguinte, foram andar pelas caminhadas que a região oferece.
Cf. Ludwig, Alfredo, Uma viagem pelo Rio Grande do Sul (3º vol). Tipografia do Centro S.A.- Centro da Boa Imprensa do RGS, Porto Alegre, 1943, p. 83-84, A família Einloft.