A engrenagem sutil da opressão

“Aqui aprendi que precisamos existir para todos”.

Daniel Munduruku

Eu o conheci no boteco, próximo à rodoviária. Foi da vez em que eu bebia cerveja e ele se aproximou perguntando, sem cerimônia alguma, se eu não poderia lhe pagar uma bebida. Daí, sem cerimônia, respondi que sim. E minha cabeça de homem branco já pensou que não há, nesse mundo cruel, almoço grátis. É evidente que pesquisei sobre a vida dele. Segundo o dono do bar é um bom sujeito. Travamos relacionamento e conversa:

-Escuta - eu disparei a palavra - lá na sua aldeia ainda tem algum segredo?

-Que segredo você procura - ele perguntou sorrindo.

Expliquei que eu procurava alguma coisa sobre os índios que pudesse me ajudar nas pesquisas. Expliquei também que era um estudante, desses que recebem uns trocados do governo para pesquisar a vida deles. Ele jogou a latinha no chão, pisou em cima e depois colocou-a em uma sacola encardida que pendia do ombro. Olhou para longe e demorou um instante. Percebi que ele tentava inventar algo ou se lembrar de algo.

-Tem uma coisa - disse olhando para os lados.

-Se incomoda se eu ligar o gravador?

Conversamos uns dez minutos sob uma mangueira na avenida Afonso Pena. Ele me passou o nome da pensão onde estava morando e disse para eu procurá-lo a qualquer hora da noite. Na rápida conversa que tivemos fiquei sabendo que havia um local próximo da sua aldeia de origem, onde era possível localizar umas ‘porungas’ ou ‘cabaças’, pequenos vasos dos antigos, ele disse cabisbaixo.

-Mas, tá lá nas terras de um fazendeiro – falou.

-Mas, não foi ele quem fez, foi? – eu perguntei.

Na noite seguinte eu o procurei. Combinamos de viajar de manhã. Disse a ele que compraria duas passagens ida e volta, Campo Grande/Aquidauana. Ele olhou ao redor e seu olhar abarcou o minúsculo e sujo quarto de pensão e disse que precisava também de uma mochila nova. Consenti e lhe dei uma nota de vinte reais. Peguei minha prancheta e diminuí o dinheiro dado a ele do total referente à minha bolsa de estudos.

-Até amanhã então, né?

-Até!

Saí da pensão me sentindo um pouco ruborizado, com o rosto vermelho. Como se tivesse praticado, ou estivesse em vias de praticar algo indecoroso. Não sabia, até aquele momento, se estava usando ou sendo usado por um índio desgarrado e alcoólatra. A única coisa que eu sabia, ou julgava saber, era que eu estava prestes a descobrir um possível sítio arqueológico ou cemitério indígena. E que os vencimentos de minha bolsa seriam prorrogados. Saí caminhando leve de curiosidade, carregando meu corpo para o dia seguinte.

Que chegou ventoso e frio. Do oeste vinha uma claridade alaranjada que se esparramava na janela do meu quarto. Em silêncio peguei minha mochila. Caminhei até o ponto de ônibus. Lá dentro também era puro silêncio, excetuando o barulho do motor. Dez km depois, desci. O sol juvenil e o céu azul clamavam por barulho. E ele viria:

-Bam, bam, bam – fez o som oco de minha mão na porta do quarto dele.

-Já vai, hômi – disse uma voz sonolenta e irritada.

Abriu a porta e me surpreendeu com a rapidez com que jogou a água de uma bacia no rosto e passou as mãos molhadas no cabelo. Pegou a mochila e disse estar pronto. Olhei para a velha mochila e o encarei. Ele abaixou a cabeça e sacudiu os ombros, depois abriu-a e mostrou o que tinha dentro. Consegui ver algumas garrafas pets, ao que parece, cheias de cachaça. Ignorei, saí do quarto e disse que tínhamos dez minutos para chegar à rodoviária.

-É muito tempo – ele disse.

-É – disse eu.

Assim que adentramos no ônibus ele sentou-se e dormiu a viagem inteira. Acordou com os raios atrevidos do sol que ultrapassava a cortina e os eucaliptos da beira da estrada. Tive de puxá-lo pela manga da camisa para que ele descesse. Ficou parado ao meu lado no terminal com uma cara bicuda que demonstrava insatisfação. Acenei para um táxi. O motorista parou e nos lançou um olhar de suspeita. Ele não se incomodou e pulou rapidamente para dentro. Mordendo o lábio inferior o motorista perguntou:

-Para onde freguês?

-Agora é com ele – eu disse dando-lhe um leve cutucão.

Ele falou e o táxi começou a rodar deixando a cidade para trás. Passamos por trechos de pastagem e plantações de cana. A estrada era reta e longa como o suspiro de um apaixonado. Ilusões à parte, o carro parou em uma curva no fim de uma estrada de cascalho. O homem disse o preço e eu paguei. Descemos. Ele atravessou uma cerca de arame farpado e eu o segui. O táxi manobrava às nossas costas e saiu cantando os pneus. O táxi partindo e ele caminhando. Os dois em opostas direções. Apenas eu parado no meio de um caminho que não sabia aonde ia dar.

Pus o ouvido na terra e fiquei tentando escutar barulhos distantes e a poeira amarela do cerrado fazendo cócegas no meu nariz. Levei um tapa amistoso que raspou a base da minha nuca.

-O que faz aí? – ele falou meio sorrindo.

-Tô tentando saber se alguém se aproxima...

Sorriu com os dois dentes amarelos da frente e alçou os braços ao redor, numa cena, para mim, cinematográfica. Depois ajeitou com os dedos calosos o velho boné do posto Ypiranga. Seus longos cabelos negros era a sua resistência original. Fiquei pensando que no dia em que os homens brancos conseguirem cortar aqueles cabelos terão vencido a vontade de vida dele. Aquele índio banguela, idoso e alcoólatra tinha a dignidade de Sansão.

-Tem certeza de que é por aqui que se chega ao morro?

-Por aqui é mais perto.

Começou a caminhar ligeiro apesar da idade. Vez por outra o capim da trilha passava em seu rosto como uma brisa pelo buraco de uma fechadura. Ele parecia estar abnegado. Caminhava com imponência no meio do mato da mesma forma que eu caminhava no parque aos sábados de manhã. Depois de um tempo e alguns cortes de capim pelo braço e pescoço eu estaquei:

-Falta muito – eu perguntei me aproximando do calcanhar dele.

-Não, é logo ali – disse apontando o dedo para um lugar alto e sem mato.

Andamos aproximadamente mais cem metros antes de atravessarmos uma planície gramada e, em seguida, pulamos um barranco e uma valeta do que tinha sido um regato. Subitamente, ele parou e pôs a mochila no chão. Acocorou-se com um joelho na terra e retirou uma garrafinha de aguardente. Ofereceu-me brevemente e desarrolhando virou-a de um gole só todo o conteúdo dela. Fiquei olhando com pena daquele filho da terra. Acocorei-me também e pegando-o no ombro indaguei:

-Chegamos?

-Chegamos. É ali – ele disse com uma vozinha bêbada.

Levantei-me. Retirei a câmera fotográfica e um caderno de notas da bolsa. Olhei para ele, que continuava agachado, e dei dois ou três passos à frente até que meus tênis se chocaram contra um recipiente duro e empoeirado. Abaixei-me para fotografar e anotar. Ao que parece era mesmo uma cuia, uma espécie de pote de fabricação artesanal indígena. Olhei para trás para lhe dar os parabéns por ter me levado a sério e me levado tão longe nas pesquisas de campo, mas o que vi me desapontou de uma forma triste. Ele não estava mais acocorado sobre uma perna só. Estava ajoelhado literalmente e, ao seu redor, tinha duas garrafinhas já vazias. Ele remexia na velha mochila procurando uma terceira. Daí tive que intervir:

-Para, vamo embora – eu falei meio sem vontade, olhando para o sítio à frente.

-Eu sei me virar sozinho – ele disse e deu um repelão, se livrando de mim.

Desceu cambaleando a ladeira. Adentrou no capinzal e foi se distanciando pela pastagem. Fiquei olhando o máximo que pude. Fiquei triste por um instante, depois me convenci de que ele tinha ido para a sua aldeia em algum lugar ali perto. Ou tinha ido para a estrada esperar carona. Ou, talvez, tenha ido terminar de tomar os seus tragos debaixo de alguma árvore. Eu teria o dia inteiro para fotografar, anotar e recolher o que achasse necessário.

De repente, tão rápido como um relâmpago eu tive um pensamento angustiante: dele eu não sabia nem o nome. Com que direito eu vasculhava o seu passado?

make
Enviado por make em 26/02/2019
Reeditado em 11/07/2021
Código do texto: T6584895
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