O dia chato

Sabe aquele dia em que você acorda e pensa: “Vai ser mais um dia chato pra caramba!”. Pois é.

Meu nome é Marcos, sou funcionário de uma fábrica de brinquedinhos medíocres, que eu nem sei como ainda está aberta, haja vista a tecnologia de hoje oferecer brinquedos muito melhores às crianças do Brasil inteiro. Mas graças a Deus, a fábrica sobrevive e eu na condição de funcionário antigo (23 anos de casa) estou empregado. Não é o melhor emprego do mundo, mas é melhor do que nada, afinal, ganho dois salários mínimos e pra quem vive sozinho, é o suficiente. Além do mais, se eu nos meus 42 anos de idade ficar desempregado agora, fica muito difícil arrumar outro emprego.

Aquela sexta-feira seria maçante e igual a todas as outras, onde eu cumpriria a mesma rotina de sempre. Resumindo: Um dia chato. Mas no caminho do trabalho, me aconteceu uma coisa que mudou todas as expectativas que eu tinha de ser mais uma rotineira sexta-feira.

Peguei o meu carro e fui a caminho da fábrica. No meio dos sete quilômetros que eu tinha que percorrer para chegar ao meu local de trabalho, mais precisamente perto de um terreno baldio, um acidente envolvendo dois carros e um caminhão bloqueou a única rua que dava acesso ao bairro onde eu trabalho. Era só o que me faltava! Chegar atrasado por causa de um maldito acidente! Bom, pelo menos o meu carro não estava envolvido. Mas até a situação ser resolvida, levaria tempo. Em 23 anos nesse emprego, eu nunca me atrasei, nunca faltei e como a fábrica estava à beira da falência, um vacilo igual a este agora seria a “azeitona na empada” pro chefe me demitir por justa causa. Eu instintivamente pensei: ”Maldito acidente! Não poderia ter sido em outra rua?”. Com a cabeça quente, saí do carro, o tranquei bem e fui a um bar tomar um cafezinho enquanto analisava o que fazer. Estacionar o carro ali e ir de táxi? Nem morto! Se eu fizesse isso, quando eu voltasse o carro fatalmente não estaria mais ali. Neste momento, com o copo de café pela metade, eu pensei: “Mas o que vale mais? O meu carro ou o meu emprego?” Eu estava entre a cruz e a espada. Enquanto eu estava absorto nos meus pensamentos, nem me toquei de um pivete que estava chegando perto sorrateiramente. O menino, com uma agilidade incomum, catou o celular do bolso da minha camisa e saiu correndo. Instintivamente, corri atrás dele, ele entrou no terreno baldio e com a agilidade de um gato, ele pulou um muro. Tentei pular o muro atrás dele, mas meu barrigão não deixou. Dei a volta no quarteirão pra ver onde ficava o outro lado daquele muro. Mas sem sucesso, havia alguns prédios, mas nada que ficasse na frente daquele terreno baldio. Analisei que o moleque certamente estaria atrás de algum prédio ou que depois daquele muro, haveria uma viela entre os prédios e o muro, por onde ele pudesse passar, pra daí chegar em outro lugar. Voltei ao muro e olhei por cima, confirmando a presença da viela por trás dos prédios. Olhei onde a viela terminaria e vi uma casa toda mal-construída, talvez pertencente a alguma favela. Tentei mais uma vez pular o muro, mas quando eu estava quase conseguindo subir, alguém me cutucou nas costas. Olhei pra trás, era um policial que disse:

- Ei! O que o senhor pensa que está fazendo?

- Eu estou correndo atrás de um pivete que roubou o meu celular.

- Nome?

- Marcos da Silva Siqueira Pereira

- Você faz o que na vida?

- Eu sou funcionário da fábrica “Floquinho Doce” há 23 anos. Só não estou lá trabalhando agora porque este maldito acidente bloqueou a via e eu tenho medo de deixar o meu carro estacionado aqui.

- Identidade?

Mostrei a identidade e ele me liberou. Neste momento, percebi que os carros acidentados foram rebocados e a via estava liberada. Pensei: “Aquele moleque deve estar a no mínimo um quilômetro de distância a essa hora. Meu celular já era.” Voltei pro carro e fui trabalhar.

Chegando ao meu local de trabalho, o chefe já estava me esperando na porta. Com cara de poucos amigos, assim que me viu, ele foi logo dizendo:

- No meu escritório já!

Entrei logo atrás dele e ao sentar-se à mesa, o chefe disse:

- Vinte e cinco minutos atrasado! Se não tiver uma boa desculpa, vou te demitir sem pestanejar!

- Aconteceu um acidente no meio do caminho e....

- O teu carro estava envolvido nesse acidente?

- Não, mas a Rua Faria de Lima ficou bloqueada bem embaixo do semáforo.

- E por que o palhacinho não pegou um táxi até aqui? Tem um ponto de táxi do lado da sapataria, um pouco depois do semáforo.

- É que um bandidinho roubou o meu celular e eu estava correndo atrás dele.

- E você ficou vinte e cinco minutos correndo atrás dele? Com esse barrigão? Me poupe!

- Mas não foi só isso! Eu também não poderia deixar o carro ali, porque aquele lugar tem muito ladrão.

- E isso é problema de quem?

- Meu, mas.... justamente por isso, eu estava resolvendo o meu problema.

- E a fábrica, que está quase indo à falência que se dane, né?

- Não é isso, chefe...

- É isso sim, como não? Você resolveu um problema teu e colocou a fábrica em segundo plano. Está demitido por justa causa!

- Ta bom, chefe. E quanto ao meu tempo de casa?

O idoso riu e disse:

- Entra na justiça! Já tem um monte de gente entrando na justiça contra mim mesmo. Um a mais, um a menos, nem vai fazer diferença!

Saí dali arrasado e sem saber o que fazer. Cheguei em casa analisando onde eu poderia procurar outro emprego. Fiquei moído de raiva do pivete. Afinal, se a bandidagem não fosse tanta naquele local, eu realmente teria pegado um táxi com a certeza de que encontraria na volta o meu carro me esperando. Eu pensei: “Malditos bandidos! Tiraram o meu emprego! E agora? Como é que eu vou fazer?”. Ainda era manhã e eu ainda não havia comido nada. Eu costumava comer alguns biscoitos dentro da fábrica assim que chegava antes de começar os trabalhos. Olhei a dispensa e vi que estava vazia, pois eu raramente almoçava ou fazia lanches em casa. Nesse momento, alguém bateu na porta. Atendi e um idoso muito bem vestido me olhou nos olhos e com seu olhar penetrante, disse de forma branda, porém cabal:

- Eu soube que você está desempregado, rapaz.

- Sim... Eu perdi o emprego hoje.

- Quer a oportunidade de um novo emprego?

- Primeiríssimo de tudo, quem é o Senhor? Como sabe que eu estou desempregado?

- Tudo a seu tempo, meu rapaz. Primeiro me diga se quer ou não o emprego que eu tenho a te oferecer.

- Por um bom salário...

- Pelo mesmo salário que você ganhava na Fábrica Floquinho Doce. Dois salários mínimos, nada mais!

- Espera aí! Como o Senhor sabe até o quanto eu ganhava e onde eu trabalhava?

- Eu venho observando você há semanas. Eu sei que todos os funcionários da quase falida fábrica do meu irmão ganham a mesma coisa: Dois salários mínimos. Estou abrindo um novo comércio e para afrontar o meu irmão, estou contratando todos os empregados que ele está demitindo. Através de um espião ali dentro, eu sei direitinho até os nomes dos funcionários que ele vai demitindo, conforme a fábrica vai falindo. Não se culpe, Marcos, que o teu atraso foi só um grão de areia. Ele só não demitiu todo mundo e fechou as portas ainda, porque tem sempre que ter um motivo qualquer pra alegar justa causa. E aquele acidente que te atrasou foi a azeitona que ele queria na empada dele pra demitir mais um, não importa quem, ele não tem nada pessoal contra você ou contra qualquer outro. Na visão dele, você é só um empregado a menos, como poderia ser qualquer outro. E aí? Vem trabalhar comigo, ou vai ficar desempregado?

- Bom, agora que o Senhor explicou quem é o Senhor e de onde me conhece, sim, vou trabalhar com o Senhor.

- Ótimo! Então, venha comigo! Nós vamos no meu carro. Não temos tempo a perder.

- Mas se eu for no seu carro, como vou voltar?

- Eu te dou uma carona de volta. Vamos!

- Ta bom.

E assim eu fui, acompanhando o irmão do meu ex-chefe. Eu pensei: “Deve ser estratégia combinada entre irmãos, afinal, eu tenho 23 anos de casa naquela fábrica, mas serei novato no comércio do irmão do dono da fábrica. Seja como for, a perda do emprego foi só um susto no fim das contas.”

Chegando no meu novo local de trabalho, eu vi uma enorme cozinha. O meu novo chefe disse:

- Só tem vaga pra cozinheiro e pra auxiliar de cozinha por enquanto.

- Mas eu ó sei fazer o básico.

- E o que você considera “o básico” ?

- Arroz, feijão, macarrão, farofa, bife, batatas, no mais uma salada.

- Ta perfeito! Você então vai ser o cozinheiro da equipe. São 14 funcionários além de você. Vê se não faz comida demais nem “de menos”. Com o tempo, você vai se acostumar com a quantidade certa a fazer de cada coisa. As panelas estão todas debaixo da pia. A dispensa tem algumas coisas, me avise quando alguma comida estiver acabando. Você vai só cozinhar e lavar parte da louça depois. Vou contratar uma pessoa pra montar os pratos, servir e te ajudar a lavar a louça. Mas por enquanto você....

Neste momento, o celular dele tocou, ele atendeu e disse:

- Mais um hoje? Qual é o endereço? Deixa eu anotar aqui. O nome é Luiz Carlos? Ok. Contratei o Marcos pra ser o nosso “Mestre Cuca”. Vamos ver se o Luiz Carlos aceita ser o auxiliar dele. Chego na casa dele em vinte minutos.

O idoso desligou o celular e disse:

- Boas notícias! Se tudo der certo, você e o teu amigo Luiz Carlos vão trabalhar juntos outra vez! Agora, é torcer pra ele aceitar a minha proposta.

O homem saiu sem muitas cerimônias e meia hora depois, voltou, trazendo consigo o meu amigo de infância, Luiz Carlos. Ao ver meu amigo, apertei a mão dele e combinamos ali mesmo como seria o nosso novo trabalho juntos.

O que tinha tudo pra ser mais um dia chato, no fim das contas foi um dia super-feliz. Emprego novo, trabalhando com um amigo da qual eu já trabalhava junto há 23 anos, com o mesmo salário de sempre e com um chefe muito mais simpático. Naquela noite, só restou eu dar Graças a Deus.

FIM

Eduard de Bruyn
Enviado por Eduard de Bruyn em 26/02/2019
Código do texto: T6584734
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