CENAS URBANAS - cap. DCLXVI
CENAS URBANAS - cap. DCLXVI
O idoso, todo suado, esfalfava-se na corrida mas, quanto mais acelerava o passo, mais o chato atrás dele o perseguia.
- "Não se poupe, dê tudo, doutor Sardinha... não é hora para descansos"
!
Já estava arrependido de ter começado tudo aquilo, o troço estava virando tortura. Depois da corrida ainda tinha a "bicicleta".
-- "Vamos, vamos... só faltam 6 minutos, acelera" !
Com o cérebro meio embaralhado, com pouco oxigênio, começou a ver tudo turvo. Desligou a esteira elétrica, enxugou o rosto porejado com a toalhinha que trazia na cintura e desceu do instrumento de suplício.
-- "Mas o que houve, doutor ? Onde foi que eu errei" ?!
-- "Eu é que errei, camarada... estás demitido, eu não devia ter começado toda essa insanidade" !
O super "personal trainner", hiper-requisitado, "não tugiu nem mugiu"... pegou suas tralhas e saiu batendo a porta, era bom não contrariar esses ricaços cheios de caprichos. Entretanto, ficou chateado e pensativo:
-- "Caramba, que velho maluco" !
O doutor foi passear à tarde com 2 propósitos: comprar ração canina e o afeto de um vira-lata qualquer (SRD, no jargão das lojas PET) nas pracinhas do seu bairro. Dito e feito ! Na manhã seguinte colocou grãos de ração sobre o estrado da esteira, junto com o vira-lata do tipo "chiuaua" ou coisa parecida. O "ratinho" devorou as 3 ou 4 pecinhas ! Outra mais tiveram o mesmo fim... depois ligou a máquina, o cãozinho precisava correr para alcançá-las.
Sentado ao lado da esteira, o velho "babava" e prazer "curtindo" a cena:
-- "Vamos, vamos, "Mister Fitness"... não pare agora" !
-- "Mais rápido, verme, só faltam 3 minutos" !
Sentia-se mais magro só de ver o esforço do cãozinho, agora com o "nome" do antigo "personal" dele. Já o cachorro esfalfado, mei opalmo de língua, pensava:
-- "Cracoles, madre mia, qué viejo malucón" !
*** *** ***
A reunião do Condomínio seguia acalorada, os ânimos estavam mesmo exaltados:
-- "O "seu" Onofre vem desafiando todas as regras, assim o 'Código de Conduta" fica desmoralizado", acusou a "vizinha" mais exaltada.
-- "Elevador não é bibelô, é um veículo a ser usado de forma racional, ampla, irrestrita... aceito que quem vem da praia tenha que usar o "de serviço", mas com compras de supermercado quero usar o social" !
-- "Isso não pode ser.. o sr. está quebrando as regras", exasperou-se a moradora do 401, vizinha dele.
-- "E a senhora enche o corredor de brinquedos, também quebra as regras" !
-- "Meu filhos não têm onde brincar... por acaso o sr. tem filhos" ?!
-- "Não, mas tenho empregada e não concordo que ela tenha que usar o elevador de serviço... que um entregador qualquer o faça, eu até entendo, mas eu pago "esta merda" e exijo que quem está comigo tenha os mesmos direitos, pombas" !
A "generala", digo, "presidenta" do Conselho ( e esposa de general aposentado) intervém, irritada:
-- "Esta merda" ía muito bem ANTES do sr. vir morar aqui, "seu' Onofre... sem regras vira bagunça" ! A reunião está suspensa até a Assembléia Geral, daqui a 15 dias. Vamos pôr em votação o pleito do morador do 402 com relação ao uso dos elevadores. Proponho uma "moção de admoestação" por má conduta ao morador em questão" !
Para desespero do "doutor" Onofre todos concordaram e os dias subsequentes foram de apreensão. A "vizinha" dele era só júbilo, com os pimpolhos a lhe incomodar abusadamente, bem na sua porta.
Chegado o dia, não se falava de outra coisa no prédio inteiro, reunião "de casa lotada", foi um sábado anormal. A "generala" impunha respeito e as chances de Onofre eram mínimas. Com voto secreto, então, êle não teve o menor apoio... tudo voltava ao normal !
-- "Os incomodados que se mudem"!, declarou a "presidenta" entre risinhos de quase todos. Onofre mudou-se pouco depois -- quebrando contrato, com prejuízos -- ignorando que em todos os prédios cariocas encontraria os mesmos problemas. "Somos TODOS IGUAIS", declara a Lei... menos nos elevadores do Rio !
"NATO" AZEVEDO (em 20-21/fev. 2019)