Transmutação Cotidiana

As horas sempre passavam sem que eu percebesse. Faltavam 45 minutos para a quarta-feira, mas para mim continuava sendo aquele dia horroroso que o domingo é. A segunda-feira passara rapido demais assim como o tombar das ondas do mar em comemoração a mais um ano de vida (ou menos um ano, porém não vem ao caso mencionar isso).

Ultimamente, pensava mais sobre o futuro e no que aconteceria se eu passasse a vida toda deitada naquela cama de quarto lamentando o que ainda estaria por vir.

Eu olhava ao meu redor, mas nada me olhava de volta. Eu dizia tanto faz para a maioria coisas quando eu era o próprio "tanto faz" da vida. Foi então que em meio a esses familiares devaneios a Apatia veio me visitar mais uma vez. Ela entrou de mansinho em meu quarto e deitou de leve ao meu lado, dizendo:

- Você sabe que nada é do jeito que você quer. Nunca vai ser assim. A regra é a mesma para todos, alguns só tem sorte de encontrar um atalho sem muitos espinhos. Sabemos que não vale a pena se esforçar tanto nem para morrer. No final, irão todos para o mesmo lugar.

- Eu esperava por você. Sabia que viria de novo. Nunca nos distanciamos por muito tempo e nem podemos, Apatia. Você sabe o que sinto porque você é o que sinto.

- A Felicidade me despreza. Diz que não vejo nada além de um grande nada. Não tenho culpa de ser assim. É a sua e nossa natureza.

- Não acredito mais na Felicidade. Semana passada ela veio aqui, mas não ficou nem sequer por muito tempo. Disse que as coisas não são assim e que me iludo querendo que certas coisas sejam imutáveis.

- Por isso estou aqui. Sabemos que realmente isso não funciona. É pior ficar pensando demais no futuro. A Tristeza que vem com esses pensamentos é uma puta.

- Sim, sim, ontem à tarde ela veio aqui e passou a noite toda. Faz pouco tempo que saiu. Não consigo entender o porquê de ela insistir em mim.

- Oh, eu entendo. Há beleza em suas fragilidades mais profundas.

- E quais são elas?

- Você deve saber, senão eu e ela não existiríamos.

- Não sei dizer bem quando tudo começou...

- Ninguém sabe exatamente. Alguns têm uma inclinação maior que outros para a desgraça.

- Então faço parte desse "alguns"?

- Você sabe a resposta...

E assim manteve-se toda a noite. Nada de especial acontecia a não ser determinadas visitas. As mais conhecidas eram a Tristeza e a Apatia, pois eram minhas melhores amigas há anos. Praticamente todos os dias uma das duas me visitava. Quando as duas se encontravam, a conversa durava a noite toda, com cada uma contando suas frustrações do dia e da minha vida. Era engraçado como a Tristeza sempre ia embora mais cedo e me deixava com a Apatia. Ela alegava que meus sentimentos atuais eram quase um vazio e que não via quase nada dela em mim, justamente por eu não ficar me importando com coisas pequenas.

- Houve vezes em que fiquei mais tempo, mas agora percebo sua nova amiga...

- Não tenho culpa, Tristeza, sempre que você vem não posso ignorar a Apatia. Ela me mostra coisas que poucas pessoas podem ver ou se fazem de cegas. São seja como eles.

- Jamais serei como eles e nem você será.

- Deixe-me!

- Não posso! Não posso! A Felicidade me ameaça dia e noite. Não posso deixá-la ainda, frágil coração. Falta um bom tempo até que tudo se resolva!

- Mas tudo o quê? Diga-me!

Não houve resposta. Havia desaparecido como fumaça. Assim, ia embora sempre cedo, por volta das 23:30, pois era quando minhas perguntas se tornavam mais severas.

Sempre após sua saída, a Apatia pensava em chamar a Felicidade, ou ao menos tentar, mesmo sabendo que ela não desejava estar aqui. Esta sempre teve um pé atrás comigo, sempre se manteve distante, mesmo eu perguntando o porquê das coisas. Ao mesmo tempo que era sorridente e me fazia sentir bem, anunciava meu próximo destino:

- Alguns dizem que não existo plenamente, mas aqui estou agora. Todos os humanos parecem carentes vindo clamar por mim nos piores momentos... Eu não entendo vocês. Eu não posso ficar para sempre! Tenho outros lugares para visitar e se permanecer aqui por muito tempo, o Tédio toma conta de mim. Nunca fui amiga dele e nem serei. Por isso, está na hora. Não seja maricas. Voltarei, mas não em breve. Não deixe que o Desespero chegue muito perto, a companhia dele é sua maior inimiga.

- Tudo bem, então. - Dizia eu.

A Raiva também se aproximava às vezes. Nunca ficava muito distante ou próxima demais. Ela era o que eu chamava de doença. Não queria tê-la por perto, mas em certos momentos isso era inevitável e tentava tomar conta de mim (e algumas poucas vezes conseguia).

Nesse mesmo dia, eu e Apatia fomos dormir às 2:00h. Quando acordei às 7:00h ela já olhava pela janela, o mesmo que eu fazia há anos, e dizia:

- É de manhã e as pessoas se levantarão, assim como você, e farão as mesmas coisas, sem perguntar nada, sem questionar nada... como robôs.

- Sim, fazemos isso, você sabe. Não há escolha e a Liberdade não existe. É um mito. Você alguma vez a viu por aí?

- Não. Ouvi apenas relatos, mas ela de fato não existe. Alguns apenas acreditam e se iludem para se sentirem melhores ou menos domesticados.

- Sim, sim... Eu já imaginava. Por muito tempo acreditei nela e fui atrás, mas só esbarrei com a Tristeza.

- É o que acontece por querer viver no mundo dos sonhos.

- Eu sei, Apatia, por isso parei de acreditar em quase tudo.

- Você fez bem. Quase nada vale a pena. Veja só este dia: repetição e mais repetição. Você já sabe o que te espera no final.

- Aqueles malditos... Ter que conviver e aturá-los...

- Logo as horas passarão e voltaremos ao nosso aposento.

- É o que mais quero.

E desse modo minha rotina era a mesma de sempre: dormir, acordar, estudar, dormir. Às vezes, quando raramente saía, duas visitas me surpreendiam: A Euforia e a Felicidade. Dependendo do dia, elas chegavam de mãos dadas, pulando e gritando ou simplesmente caminhando lentamente ao meu lado.

- Ouça, Felicidade, ouça! O coração bate com tanta força que parece querer sair do peito! O brilho em seus olhos diz tudo! Vamos lá! Vamos! Vamos!

- Sim, eu ouço e vejo! Amo vivenciar esses momentos raros, pena que não poderemos ficar por muito tempo.

- Uma pena... Uma pena... Oi, olá! Eeeei!

Com isso, sentia-me viva mesmo que por pouco tempo ao ouvir suas vozes próximas a mim. Nesses momentos, eu sequer via a Apatia, mas sabia que bastava eu abrir a porta de casa e entrar em meu quarto para encontrá-la, pois era como sempre acontecia e eu apreciava isso.

Apesar de tudo, tinha orgulho de mim. Era preciso ser forte para aguentar os diálogos rotineiros dela e quase ser esquecida pela Felicidade e sua amiga.

É somente a vida fazendo seu papel de sempre e eu fazendo meu papel de...

O quê?

Eu ainda não sei...

LeHills
Enviado por LeHills em 20/02/2019
Reeditado em 22/02/2019
Código do texto: T6579654
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