Conto das terças-feiras – Dr. Pasta Pura e Garapa
Gilberto Carvalho Pereira, Fortaleza, CE, 19 de fevereiro de 2019.
Algumas cidades guardam estórias de personagens que fogem da realidade do cotidiano de seus habitantes. Geralmente pessoas que, por distúrbios mentais, provocam o riso, a zombaria, chegando a patrocinar situações ridículas, burlescas. Estão sempre a vaguear, a andar a ermo pela cidade, e alguns até dormem nas ruas.
Em uma cidade do Sul da Bahia, havia dois indivíduos com as características enunciadas anteriormente. O doutor Pasta Pura e a mulher Garapa. Eles tinham famílias, não moravam na rua, mas era na rua que eles passavam o dia todo, desde ao amanhecer até o pôr do sol. Eram a alegria da garotada e de alguns marmanjos, também.
O doutor Pasta Pura tinha como ponto de estima a Praça Principal, ou Praça da Câmara de Vereadores. Dizia ele, ser um parlamentar e que estava ali para ouvir os reclamos da população. Em sua pasta, segundo ele, estava sempre cheia de projetos para a cidade, tal como a construção de um aeroporto, embora nem rodoviária houvesse na cidade. Trazer o mar da cidade vizinha até a sua e fazer um grande hospital para os bichos que perambulavam doentes pelas ruas eram outras providências projetadas.
Trajando sempre terno surrado, preto e gravata impecavelmente passada a ferro, portava-se com certa elegância. Sapatos pretos, um deles já com furo na sola, sempre lustroso, que conseguia passando no couro casca de banana madura, duas vezes ao dia, dizia isso com orgulho. Cumprimentava a todos que por ele passavam, fazendo um discreto movimento com a cabeça. Só não gostava da aproximação de meninos, que ele dizia serem “malinos”, sempre querendo roupar a pasta de seus projetos.
Certo dia um garoto mais corajoso se aproximou e roubou-lhe sua pasta. Satisfeito com a proeza, o garoto saiu anunciando:
— O homem que diz ter projetos na pasta, ela não tem nada dentro. É uma pasta pura.
Furioso, o homem desembestou atrás do garoto, gritando.
— Seu ladrãozinho de pasta oficial, volte aqui, eu vou chamar a polícia.
Os dois corriam desenfreadamente e, quem assistia àquela cena ria, o que deixava o homem mais enfurecido. Lá na frente o garoto gritava:
— Doutor Pasta Pura, doutor Pasta Pura, você não me pega!
Depois de muito correr, o menino jogou a pasta na calçada, que foi apanhada pelo doente mental. Foi a partir desse episódio que o povo da cidade passou a chamá-lo de Doutor Pasta Pura. Também foi a causa da piora de sua doença.
A outra personagem tratava-se de uma senhora que, ao perder o marido para a amante, passou a se embebedar, virou alcoólatra e a vagar pela cidade, sempre bêbada. Mexia com todas as mulheres que por ela passavam, xingando-as de prostitutas, tomadoras do homem alheio. Seu ponto principal era em frente ao bar do seu Raimundo, o homem que a sustentava com a cachaça, em troca de sexo. Idoso e solteiro acolhia a bêbada na hora de fechar o bar. Em um depósito nos fundos do bar ele improvisou um quartinho para ela, que ficava trancado até o seu retorno pela manhã do outro dia. Era o medo de ela acordar e beber toda a cachaça do bar.
Quando a senhora resolvia sair das imediações do bar, a garotada começava a caçoar com ela. Geralmente sempre em dupla, um gritava:
— Água! – o outro, logo a seguir, também gritava:
— Açúcar! – a mulher, com muita raiva berrava:
— “Mustura” desgraçado, “mustura”! E toda a garotada por perto gritava:
— Garapa, sua garapeira, sua bêbada!
As pessoas que passavam por perto riam, enfurecendo ainda mais a mulher, não tão bêbada até àquela hora. Ela corria atrás do mais próximo, e, se pegasse, tirava seu chinelo e dava algumas chineladas no bumbum do descuidado. Não doía, ela não batia com força, lembrando-se de seus filhos.
Dona Garapa não viveu por muito tempo, a cachaça atacou seu fígado e ela morreu de cirrose hepática. Em seu velório muitos dos garotos que a insultavam, compareceram, talvez para pedir-lhe perdão.