Reflorescer
São oito horas da manhã na Rua João Pedro Martins, em Palhoça. Se em algum outro lugar também é ou deixa de ser, pouco importa para Herberto. O que vale é ter conseguido estar de pé neste dia, no horário em que se propôs. Dane-se o resto do mundo!
Um café simples e rápido é passado à moda antiga, com coador de pano, chaleira velha e bule amassado.
Não qualquer bule amassado. Este pertencera à Rosinha. Tocar nele é ainda sentir sua mão. Aliás, preparar a tradicional bebida quente matinal só faz sentido por isso. Para tê-la por perto.
A água ferve. Ele a despeja sobre o pó, concentrado no pequeno saco de pano. O aroma sobe junto com o vapor, inundando suas narinas, tornando o passado presente.
- Mais café, Professor Pardal? - Uma voz feminina, doce e bem humorada ressoa em sua cozinha.
Rosa sempre lhe dera apelidos que enfatizassem seu jeito avoado. No colegial, isso o incomodara. Achava deboche. Ao reencontrá-la, no mundo do trabalho, teve maturidade suficiente para perceber que era uma implicância carinhosa. Própria de quem quer mais do que amizade de escola.
Os desencontros ainda foram muitos, claro. Quando a viu crescer mais rápido do que ele na empresa, ficou outra vez retraído. E dificultou, mais uma vez, a aproximação. Achou que Rosa Lepinski deveria encontrar alguém mais forte e ambicioso, para não atrasar sua vida.
A senhorita Lepinski, entretanto, achava outra coisa.
- Psiu, Clark Kent! Que tal uma cerveja com a turma da repartição antes que alguma kriptonita o pegue? - A provocação-convite alternava os apelidos a cada vez que era proferida. E sempre feita entre um término de namoro e outro de Herberto. Ou seja, com muita frequência.
O final da passagem da água quente traz o septuagenário de volta ao presente. Ele deixa o coador na pia e fecha o bule, enquanto vai para uma rápida ducha.
A água do chuveiro atinge seus esparsos cabelos e aquece, outra vez, suas lembranças.
Agora vem a noite em que o magro e atrapalhado funcionário aceitou o convite, aparecendo no bar para beber com Rosa e seus colegas.
Depois de um copo, sua boca recuperou a plenitude dos movimentos, permitindo falas articuladas e sorrisos maiores do que o educado mostrar de dentes, até ali praticado.
Foi quando ele percebeu que, para aquilo que dissesse, Rosinha daria audiência.
Não importava o que os outros falassem, quantas piadas e cantadas novas tivessem. A bem humorada moça concentrava um pequenos percentual de atenção, apenas; e depois voltava-se para o novo integrante da mesa.
E nessa hora, enfim, a confiança em si começou a brotar. A mulher com nome de flor o fizera perceber as muitas primaveras que uma pessoa é capaz de abrigar.
Banho concluído. Hora de se arrumar, tomar seu café e sair. Hoje não dá pra haver atraso algum. A data é importantíssima: Faz cinco anos que Rosinha teve aquela conversa louca e professoral, tão difícil de entender. Cinco anos, também, que ela o fez prometer uma coisa.
O precioso líquido mergulha em sua garganta, enquanto seu vapor escala as narinas uma vez mais. É curioso que o aroma, mesmo subindo, chegue primeiro ao coração. Mas é assim que é, para ele. O café tem cheiro de amor. Tem cheiro de Rosinha.
Desjejum encerrado, dentes escovados, parcos cabelos lambidos. Uma boa colônia, camisa de baile, calças de missa. Sapatos pretos e seu mais valioso blazer completam o quadro.
Um último detalhe lembrado, ao abrir a porta: Seus óculos. Volta para pegá-los. Como de praxe, estão engordurados.
Consome mais alguns minutos limpando-os com profundo detalhismo, diante da pia do banheiro, testando-os vez ou outra.
- Ei, Dr. Banner! Vai levar muito tempo aí, brincando na frente do espelho? Se perdermos o cinema, eu é que vou ficar verde!
A voz de Rosinha sempre aparece nessas horas. Impossível testar as lentes sem ouví-la.
Com suas brincadeiras, não só o encorajava. Mantinha seu ritmo, equilibrava seu dia.
Ao longo do tempo, isso representou mais horas para si. Mais dias para os dois.
Encorajado, o mestrado veio. E o Professor Pardal, o Doutor Banner, e tantos outros cientistas titubeantes que viviam nele, afloraram. Seguros e determinados.
Despediu-se da empresa e foi contratado pela Universidade.
Sua carreira como biólogo, por fim, desabrochou. Na companhia de uma Rosa. Nada mais adequado.
Reminiscências desativadas mais uma vez, enquanto fecha a porta da discreta e confortável casa. Sai para a rua, onde um presente barulhento insiste em desfilar sem lhe pedir permissão.
O dia está ensolarado, combinando com seu propósito. O ex-avoado caminha em direção ao Passavinte, bairro que fica do outro lado da rodovia federal que corta o município. Há um viaduto alguns metros adiante, por onde o idoso pretende passar em mais segurança.
- Bom dia, Sr. Herberto! - Cumprimenta-o um homem vestido de farmacêutico.
- Bom dia, Sr. Nunes! Tudo bem com o senhor? Como vai a Dona Alcina?
O septuagenário ainda tem bastante energia e consegue ser simpático com a vizinhança.
Nem sempre foi assim. O convívio com sua amada o ensinara muitas coisas. Inclusive, a sentir prazer em provocar sorriso e leveza nos outros.
- Qual o propósito em ser tão cordial com todo mundo? - Perguntava a ela.
A resposta era um grande sorriso, seguido de outra indagação:
- Qual o propósito em não ser?
Não que ela fosse uma criatura cândida e ingênua, alvo fácil para malfeitores. Na verdade, tinha até faro bom para confusões e encrencas, evitando-as com boa antecedência. Mas até diante disso seu modo de ser trazia vantagens. Pois, em todo o lugar que fosse, acabaria encontrando alguém que se importasse o suficiente com ela, para não deixá-la exposta ao azar.
Na biologia, Herberto dedicou-se à botânica. Se amava uma flor, nada mais coerente.
Quando chegou a aposentadoria da universidade, Rosa lhe revelou seu sonho secreto: Os dois cuidarem de uma loja de jardinagem e floricultura.
Cores, aromas e vida florescendo em sua volta até o final. Essa era a explicação que dava, quando ele ousava perguntar a razão de não querer sossegar, depois de tantos anos de trabalho.
Antes mesmo dela concluir seu tempo na empresa, o empenhado botânico já havia iniciado a realização do sonho daquela que lhe fizera concretizar tantos dos seus.
Vida Verde tornou-se um espaço simpático para comercializar plantas em geral, com movimento ligeiramente maior para as flores. A renda produzida nunca foi imensa, mas até hoje tem sido grande o suficiente para valer à pena mantê-lo funcionando.
Pena que o lugar não chegou a produzir muitos sorrisos na viva face de Rosa. Três meses depois dela se aposentar, a verdade veio à tona no resultado de um exame médico: uma dessas doenças que ninguém gosta de dizer o nome, cheias de descrições técnicas e tratamentos químicos que atormentam a compreensão, tinha encontrado o endereço das células da flor favorita de Herberto.
A expressão "prognóstico reservado" apareceu no laudo. Mas essa, logo foi compreendida pelo botânico. Rosinha viveria de dez a doze meses, se ficasse em casa. Um ano e meio a dois, se fosse pro hospital.
- Prefiro poucos meses, mas cuidando da loja.
Essa foi a escolha. E ele não apenas a respeitou. Brigou por sua vontade com médicos e parentes.
Todas essas imagens passam agora por sua mente, enquanto sobe a rua geral do Passavinte e entra na Vida Verde, Jardinagem & Floricultura.
Cumprimenta funcionários e clientes, dirigindo-se à gerente da loja, uma mulher de meia idade, muito dedicada.
- Bom dia, Dona Margarida!
- Bom dia, Sr. Herberto. - O retorno é simpático, mas sem energia.
Por causa de Rosa, ele aprendera o valor de estudar um pouquinho da vida das pessoas a serem contratadas. Margarida tivera uma infância em orfanatos, aguentando bullying, solidão, Natais vazios. E a impossibilidade de dar vazão a um tiquinho que fosse de vaidade feminina.
Mesmo assim, mantivera-se firme no propósito de prosperar e tratar bem os outros. Tanto, que recebera a confiança de trabalhar em funções de responsabilidade no comércio local. Uma vida de razoável êxito profissional e como cidadã. Sorrir e ter romances, entretanto, não fizeram parte dessa trajetória. Mas, a seu modo, não entendia que tivesse razões para se queixar muito.
Isso justificava para a cidade inteira a aparência envelhecida e severa, mas confiável, da administradora.
Seis meses após a morte de Rosa, o biólogo concluiu precisar de ajuda. O nome da agora gerente era o primeiro de um cadastro de talentos da cidade, que descobrira na área de trabalho do computador. Pasta organizada e atualizada pela Sra. Lepinski, é claro.
O negócio da Vida Verde segue próspero, controlado na ponta do lápis e bem satisfatório. Graças, em especial, ao empenho dela.
- Minha encomenda está pronta? - Pergunta à funcionária.
- Sim, senhor. Elza! Traga a encomenda do Senhor Herberto. - A voz séria e respeitosa da gerente se faz ouvir.
A jovem assistente traz um arranjo belíssimo, com rosas de todas as cores ao centro.
- Aqui está, senhor.
- Obrigado, Elza! - Fala o botânico, cumprimentando ambas e saindo da loja, rumo ao Cemitério Municipal.
Entrando no terreno destinado à homenagem final, direciona-se aos lotes mais ao oeste, até chegar num túmulo incomum, decorado com cores muito vivas e ilustrações alegres. No topo da lápide, o nome Rosa Lepinski .
Deposita o arranjo sobre o túmulo, enquanto lembra da conversa estranha que tiveram há exatos cinco anos. Duas semanas antes da partida de Rosinha.
Enfraquecida, mas sempre sorridente, a irrequieta mulher falou, enquanto ele ajeitava os travesseiros para que ela ficasse mais confortável:
- Tenho uma confissão e um pedido para te fazer, Cebolinha.
Surpreso com a ideia de que algo ainda precisasse ser confessado, Herberto postou-se atento e silencioso nos profundos minutos que ela utilizou:
- Primeiro, a confissão: Não foi o amor que me trouxe até você.
- Como é? - Reagiu Herberto.
Ela sorriu.
- Na verdade, nem sei direito como descrever o que é amor. Eu sempre ouvi uma voz dentro de mim, que dizia: "Ele precisa de alguém. Seja esse alguém." E só fui atrás de ti por isso.
Um estranho frio invadiu as têmporas de Herberto. Esperava ouvir várias coisas. Isto, não. Mas decidiu não interromper. Ela seguiu com seu discurso longo, mas não ensaiado:
- Vi muitos filmes, li muitos livros, ouvi muitas histórias sobre o amor. Então imaginei que ele aconteceria como um espetáculo. Assim como se, em algum momento, músicas e pássaros soassem em meu coração; e o contra-regra do teatro da vida dissesse: Esse é o cara!
Rosinha tossiu um pouco. Bebeu água oferecida por seu companheiro e prosseguiu falando.
- Mas quando te vi, aquela voz só me disse pra te estender a mão. E mesmo com a dificuldade que foi te fazer aceitar minha oferta, a voz continuou dizendo: "Ele precisa".
Herberto ficou um pouco incomodado com essa insistência na palavra "precisar". Afinal, não se via como um bichinho perdido, desesperado por uma dona. Mas a vida dele vinha sendo tão boa ao lado daquela mulher, e tão mais colorida a partir dela, que silenciou de novo e ouviu mais.
- Quando vi que pude ser um apoio para o teu crescimento, um que já estava aí dentro esperando, entendi. O adubo que eu fui, aqui e ali, pra umas coisinhas em ti, permitiu que eu também florescesse mais. Minha adubagem voltou pra mim, na forma de uma vida jardineira. Colorida, perfumada. Era o que eu sempre quis, apenas de uma forma diferente.
Ele continuou ouvindo, agora sem incomodação, mas vazando pelos olhos.
- Fazer-te bem me fez bem. E o jardim que eu desejava cultivar, aconteceu. Antes mesmo da loja. Realizei meus sonhos. Deve ser por isso que já vou partir.
Ela respirou fundo e continuou falando:
- Não sei, de verdade, se te amei. Só sei que foi a vida mais maravilhosa que eu poderia ter ou dar a alguém. Estou leve e feliz. Então, obrigada por aceitar minha insistência. Por poder ver o teu florescer.
Numa breve pausa, eles se entreolharam.
- Agora, vou fazer o pedido. - A irrequieta mulher retomou a fala.
Herberto fez sinal para que ela aguardasse um pouco. Retirou do bolso um lenço, enxugou os olhos, e balançou a cabeça. Ela prosseguiu:
- Talvez, quando acontecer, queiras ficar um tempo recolhido, ou mesmo dizer pra si que nunca mais amará alguém, seja lá o que isso signifique. Não vou opinar sobre esse ponto. É uma escolha tua.
Novo silêncio. Herberto ficou confuso, outra vez, com a conversa.
Houve mais uma respiração funda. E ela retomou:
- Mas vou te pedir pra passar essa jardinagem adiante. Porque é um ensinamento importante.
- Vender a loja? Ensinamento? - O avoado nunca estivera tão confuso.
Ela sorriu.
- Não, Dr. Watson. Nada disso. Não falei da loja. Presta atenção: Marca uma data na tua cabeça. E quando ela chegar, procura alguém e te propõe a adubar a vida dessa pessoa. Fará bem pra ela. Fará bem pra ti. E eu terei dado conta do que quis fazer a minha vida toda.
Os pensamentos param nessa fala. Ele volta ao presente. Faz uma oração sobre as flores depositadas ali. E, por fim, conversa com sua eterna Rosa.
- Olá, Rosinha. Hoje é a data que marquei na cabeça, do jeito que prometi. É o aniversário daquele teu estranho pedido. Bom... é o quinto, né?. Precisei desse tempo todo pra aceitar o que me disseste. E também pra entender.
Neste instante, a brisa sopra diferente, dando-lhe a impressão de que o éter pode ouvi-lo.
- Não me leves a mal. Eu cumpriria a promessa mesmo que não a entendesse direito. Mas fica bem mais fácil, agora. E valioso.
O botânico faz um sorriso, olha para um lugar invisível e busca concluir.
- Isso de sermos adubo um para o outro, sabe, é bonito. Mas é difícil. Nem sei se inventaste a expressão ou leste num daqueles teus livros. Mas o fato é que hoje acredito e aceito. Foste meu adubo. E se isso foi bom pra mim, espero mesmo que o tenha sido pra ti. Embora sempre acharei que ganhei mais do que devolvi.
Um pássaro canta numa árvore próxima. O septuagenário se pergunta se é ela querendo reabrir debates. Seria bem típico de Dona Lepinski.
Sorri para a ave.
- Mas vou equilibrar isso. Vou cumprir a promessa. Estou pronto agora.
Meia hora depois, sai do cemitério.
Caminha lento, leve e determinado até sua loja.
Ao entrar, vê todos trabalhando e atendendo as pessoas que lá comparecem para adquirir flores, plantas ou artigos de jardinagem.
Uma jovem adolescente sai da loja com um pacote de adubos especiais. Ele concentra seus olhos no pacote, reflexivo. Depois, dirige-se à gerente.
- Dona Margarida...
- Sim? - Ela responde, intrigada.
- Posso lhe fazer uma pergunta pessoal? - Sorri o botânico.
- Quão pessoal? - Reage, bem desconfiada, a gerente.
Com um sorriso atenuante, ele esclarece:
- Pouco pessoal. Só uma curiosidade sobre hábitos humanos. Na verdade ,gostaria de saber se você tem alguma ideia de quantas vezes alguém te fez convite para café, almoço ou jantar, ao longo da vida.
Margarida faz um sorriso mordaz e responde, oscilante entre formalismo e lamento:
- Essa é fácil, senhor Herberto. Uma vez por ano, pelos funcionários dos locais em que trabalhei, para celebrar o Reveillon. Duas vezes este ano, por movimentos religiosos que desejavam doações da floricultura. Três vezes em minhas formaturas de primeiro, segundo e terceiro grau. E só.
- Quer dizer que esse tempo todo não houve convites sem pretextos, só para compartilhar um alegre momento? - Pergunta o aposentado, mostrando-se curioso.
- Acredito que as pessoas temem que eu recuse. E é constrangedor ouvir sempre um "não" para coisas tão simples. - Ela fala, com ar de quem olha para o próprio passado.
Herberto insiste em ouvir mais.
- E elas tem razão em cultivar esse receio?
- Diria que cada uma só o saberá quando tentar. Se tentar. - As frases são pronunciadas de forma sisuda e cética.
- Obrigado, Dona Margarida. Ajudou-me bastante.
- Não entendi no que. Mas fico satisfeita em ter ajudado. - A gerente fala, quase irônica.
O Senhor Herberto caminha até a porta, acompanhado de forma discreta pelos olhos da mulher. Então, se vira e retorna.
- Dona Margarida, hoje estou precisando almoçar fora de casa. Há muita coisa se passando em minha cabeça. Decidi ir ao Café Paris, perto da pracinha. A senhora conhece como é por lá ?
- Dizem que é muito bom e bonito. Mas não posso assegurar, pois ainda não fui lá. - Responde, formal e despretensiosa.
- Então, por favor, gostaria de me acompanhar? Assim, não vou sozinho e ambos o conheceremos.
Ela fica estática. Demora a reagir.
- É só um almoço, né? - Eis o que sai de sua boca. Embora seus olhos mostrem uma pergunta maior.
Herberto lembra do trabalho que dera a Rosa, várias vezes. Sorri por dentro e responde, simpático e meio ambíguo:
- Sim, é um almoço.
Ela olha pra ele, hesitante entre um sorriso leve e a formalidade. Então fala o que Herberto nunca pensou ouvir da severa gerente:
- Pode ser às treze horas? Acho que preciso dar um jeito de ficar mais apresentável.
Sua resposta nem precisa ser ensaida.
- Passo aqui às treze. Mas fique à vontade quanto a isso, pois para mim a senhora está muito elegante.
Os olhos dela brilham. Mas a gerente não expõe sorriso. E responde, reservada:
- Até depois então, Senhor Herberto. E obrigado.
Ele sorri e sai da loja. No caminho para casa, ouve um pássaro cantando. Pode jurar que é o mesmo do cemitério. A canção só parece um pouco mais alegre.
Talvez, encorajadora.