A vez de Maria
“Quem nunca esteve sentado, cheio de medo, diante da cortina do seu coração?
Rainer Maria Rilke
Um rosto no muro. Um rosto sinistro. Dava para ver bem os olhos fundos, o queixo comprido, a boca aberta. Tudo isso se decompondo, escorrendo...
-Merda de vida!
Disse a mulher que encarava o muro sentada em um banquinho de madeira. A cabeça apoiada nas mãos e os cotovelos enterrados nos joelhos redondos e cinzentos.
-Distraído, distraído...é a puta que te pariu!
Falou chorando na direção do radinho, que vibrava sobre uma gasta mesa de madeira. O cansaço do corpo a impediu de desligá-lo.
-Enterro decente? Ele queria era uma vida decente!
Falou baixinho para si mesma enquanto mirava as unhas dos pés brilhando sob as lágrimas recém-pingadas. Nesse momento, no rádio, o locutor parou de falar e pôs uma música inaudível para Maria.
-Se eu soubesse, meu Deus, não tinha pedido para ele ir ao mercado.
Soluçando, ajeitou os cabelos desgrenhados num coque mal feito e assoou o nariz. Voltou a olhar desconsoladamente para o muro. Apertou bem os olhos e continuou vendo a imagem da dor.
-Ele escorregou numa casca de banana, dona Maria.
Foi o que disse o homem do açougue. Pensou nisso um instante e depois se levantou tossindo e relembrando a fisionomia do marido. Ele sorria para ela antes de sair. Era um sorriso tímido, tão tímido quanto a vida dele.
-Fizemos o possível, dona. Chamamos os bombeiros...
E o homem do açougue fez uma cara triste, apertou-lhe as mãos e lhe entregou a cartela de ovos. Voltou apressado para o balcão e fingiu que estava muito ocupado.
-E eu que só tinha ele! O que tenho agora?
Caminhou cabisbaixa até a casa. Deu a volta pelos fundos e desabou os cinquenta anos no banquinho de madeira. Foi um presente de João no dia em que foram morar juntos. Impaciente levantou-se e foi até a mesinha, feita por ele. Desligou o rádio que ficava ligado o dia todo quando ele estava de folga. Sentou-se novamente com angústia.
-Preciso ligar para a mãe dele. Ele só tinha nós duas.
Passou a mão no rosto e levantou-se abruptamente. Dirigiu-se para o banheiro que ficava do lado de fora e resolveu tomar um banho antes de ir à necrópole municipal. Enquanto a água escorria como areia quente pelo seu corpo magoado ficou imaginando as vezes em que João a ensaboou. Um tremor, misto de medo e algo mais, percorreu o seu corpo. Desligou o chuveiro, enxugou-se rapidamente e encarou, no espelho, sua tristeza.
-Agora é só você, como antigamente.
Saiu com a toalha no corpo. Abriu a geladeira e pegou a cartela de ovos. Havia dez intactos. Os outros dois tinham sido jogados contra o muro em um acesso de raiva. Caminhou com a cartela nas mãos enquanto monologava:
-Foi isso que te matou, João? Ou fui eu?
Não encontrou resposta. Então, pegou um a um e foi jogando contra o muro velho descascado. As claras esbranquiçadas escorriam primeiro e as gemas desciam devagar. Diante dela, nas suas pálpebras marejadas, apareceu a figura inteira do homem.
-João, João...porque só acontece o que a gente não espera?
Parou muda diante daquela ilusão de ótica. Claras, gemas, tijolos e cimento pareciam formar uma sucessão de rostos. Rosto que chora, rosto que ri, rosto que se esconde. Aquele trecho de muro era João para ela com suas muitas caras e um só coração. Com uma grande dor e um pouco de coragem retornou à varanda e ligou o rádio.
-Pelo menos isso, não vai ficar assim!
Pegou o celular sobre a mesa e ligou. Do outro lado da linha o locutor teve tempo de dizer apenas alô. Maria disparou contra ele sua enxurrada de desabafos. Pôs para fora as lágrimas em forma de palavras. O outro ouvia e de vez em quando arriscava:
-Hum, hum! Sim. A senhora tem razão.
Pôs o telefone na mesa como quem guarda uma roupa limpa: satisfeita. Foi ao quarto e se vestiu. Quando ia saindo do quarto ouviu o locutor pedindo, numa voz clara e compungida, a atenção dos ouvintes:
“PREZADOS: HOJE, DE MANHÃ, FALECEU O PEDREIRO JOÃO. ESCORREGOU EM UMA CASCA DE BANANA QUE ALGUM MAL-EDUCADO E NEGLIGENTE JOGOU NA CALÇADA. ELE CAIU, BATEU COM A CABEÇA NO MEIO FIO E TEVE TRAUMATISMO CRANIANO. LEVAVA NAS MÃOS UMA CARTELA DE OVOS QUE NÃO SE QUEBROU. JOÃO NÃO ERA DISTRAÍDO. ERA APENAS UM MARIDO DEDICADO E UM HOMEM TRABALHADOR.”
Maria suspirou. Suavemente desligou o rádio e chaveou a porta dos fundos. Caminhou ao longo da lateral da casa e saiu pelo portão de madeira. Foi caminhando resoluta, de cabeça erguida e olhos vermelhos. Lá no muro, lagartixas e formigas deslizavam sobre a superfície umedecida.