O jacaré covarde
O jacaré covarde
Eram dois amigos inseparáveis lutando pela vida e o pão... Não como os da música, sucesso de Milionário e José rico. Aqueles eram caminhoneiros, estes são pescadores, Pedro e Bino. Porém, daqueles pescadores sérios, que na pescaria gostam de passar o tempo, relaxar, apenas curtir o momento.
Sem muito que fazer aquela tarde, resolveram molhar a minhoca. Escolheram um igarapé perto da cidade onde moravam, Manaus, “eita” trem bom essa região. Aqui peixe tem como “carapanã” (pernilongo). Existem de muitos tipos, tamanhos, com mais ou menos espinhos e sempre em boa quantidade. O local onde decidiram “fincar” acampamento, uns quarenta quilômetros da cidade. A distância era certeza de bons peixes.
Pedro e Bino (Setembrino), não frequentavam aquela região, apenas por serem dois apreciadores da arte da pescaria. Porém, pela exuberância de suas paisagens. O rio era próprio para pesca, calmo, muitas árvores, ótimos poços de pesca e para quem conhece as “luas boas”, levaria muitos peixes. Dizem até, que tempos atrás havia pirarucu dos grandes. Mas isto eles nunca viram. Já matrinxã, jaraqui, trairão e outros, havia aos montes.
Como dito antes, não frequentavam aquele lugar, apenas por sua variedade de peixes, mas também, por sua beleza. Poderia sem medo, ser elencada entre as dez mais bonitas da região. Ao lado do barraco de pesca, havia uma nascente, coisa mais linda do mundo. A água parecia nascer entre as pedras, olhando de cima, eram bolhas saindo sob o cascalho, faziam um mini lago e dali rolavam até o rio. Havia cada pedrinha linda e o sabor daquela água, inigualável. Compunha ainda a paisagem, belíssimas árvores e uma incontável variedade de flores e frutos, estes, alimentavam lindas aves. As maritacas em suas revoadas fantásticas, as araras podiam ser ouvidas de longe, coisa mais linda de se ver. Contudo, a beleza estava em uma mini praia, não mais que poucos metros quadrados. Na verdade eram duas, pois a água da mina passava no meio. E assim dividia a parte de Pedro e a de Bino. O tamanho delas era proporcional, entretanto, era separada por eles da seguinte forma, a que pega mais peixes e a que não pega nada. Isto na verdade, era apenas motivo para tirar sarro um do outro, quando um estava com mais sorte.
Passado algum tempo e nada do anzol puxar, Pedro perguntou a Bino; - você viu na televisão, a reportagem sobre a menina que ficou presa numa cela com uns vinte homens, e foi estuprada muitos vezes? Bino com cara de espantado disse; - não vi nada disso. E perguntou; - como aconteceu, as autoridades já tomaram uma atitude enérgica? E continuou; - quando chegar ao juiz, muitas pessoas terão que dar boas explicações. Nessa hora Pedro caiu na gargalhada e disse; - você não lembra, foi à juíza que determinou isto, que a adolescente ficasse presa com os homens.
Então Pedro fez uma breve exposição dos fatos, para que Bino se lembrasse do ocorrido; - aconteceu há mais de dez anos, foi no Pará e a juíza mandou prender a adolescente, como não tinha onde deixar, foi para uma cela masculina e para ter uma refeição, a menina precisava trocar seu corpo por comida. E continuou, - parece que está no processo, ela foi presa por furtar um celular e um cordão da casa de um policial e arrematou; - quando acontecem essas coisas, um protege o outro, parece que tem mais delegados e policiais envolvidos. E Bino perguntou; -como não foi percebido uma menina na cela? Pedro disse; - fácil né Bino, todos foram coniventes (investigadores, carcereiros, delegados, a juíza, pessoal da limpeza, cozinha e outros). Fecharam os olhos e aqui você percebe quantas pessoas estão envolvidas.
Nisso Bino ficou pensativo por um instante e disse; - como entender uma coisa dessas, nós somos pessoas simples, “do mato”, de pouco estudo, sabemos que isto é uma monstruosidade, então, como pessoas mais estudadas, que passaram boa parte do seu tempo, aprendendo as historias da humanidade, para aplicar a justiça, têm uma atitude destas?
E o silêncio perdurou por um bom tempo, ambos ficaram buscando a melhor resposta, a reflexão de Bino.
Pedro achou interessante o raciocínio de Bino. É verdade, um primo seu, estudou desde cedo em bons colégios, era pouco visto na casa de seus avós, onde naturalmente a família se reunia, em época de festas. A resposta dos pais para sua ausência; - está estudando, amanhã tem prova, - ou agora não dá, fará vestibular, também; - nem pensar em ficar a toa. Quando foi para a faculdade, ai ficou pior vê-lo. Foram duas ou três vezes, no velório de um tio e no casamento da irmã mais nova, a outra não recordava. Mais que isto, apenas os pais poderiam falar, mas era quase a mesma coisa, - amanhã tem prova.
Logo após o termino da faculdade, a coisa não mudou muito, só que agora estudava para concursos. Enfim, dois anos depois se tornou promotor.
Em uma das raríssimas oportunidades que conversaram, já tinha uns dois anos, seu primo falava sobre justiça. Seu conceito veio de como o primo disse ser esta, para cada pessoa. Ele falou; - o que vemos por justiça, depende do quanto estudamos, para dividir o que é justo para, cada um. Pessoas com mais estudo, ou que vivam em lugares mais habitados, é normal que saibam mais de justiça, que aquelas de lugares remotos. E continuou; - eu, se cometo um crime, a pena deve ser mais pesada, passei mais tempo estudando as consequências de ações antissocial. E justificou; - pessoas ribeirinhas aqui da região, devem ter suas penas menores, muitas vezes não tem ideia que sua atitude é crime.
Pedro não entendeu e seu primo exemplificou uma situação fácil; - imagine uma pessoa aqui da região, vai para a capital, em uma praça qualquer, percebe que alguém esqueceu o not book no banco, ele pega e leva para casa. Ou, um estudante que faz faculdade, na mesma, situação leva o aparelho para casa. Ambos cometeram um crime, se apropriaram de uma coisa que não era deles. Porém, as câmeras de segurança identificaram estas pessoas. O estudante apagou tudo que tinha e vendeu o not book. Já o ribeirinho guardou, não sabe a utilidade daquilo. E finalizou, - ambos se apoderaram de algo que não é deles, porém, o estudante com mais acesso a cultura, deveria ter buscado saber de quem era o aparelho, se não, guardado, contudo, nunca vendido.
E foi assim que Pedro entendeu o comentário de Bino. A juíza, os demais envolvidos, deveriam ser apenados com gravidade. Afinal, todos sabem o quanto a menina sofreu sendo abusada sexualmente.
Quebrando o silêncio, Bino perguntou; - e como terminou este caso?
Pedro riu de novo e disse; - não terminou, há dez anos a coisa se arrasta em tribunais, parece que a família esta vivendo corrida pelo Brasil, num sistema de proteção as testemunhas. A cada tempo, mora em um estado diferente.
“Tá” e a juíza, delegados, policiais, como estão? Indagou Bino; - melhor que antes, disse Pedro.
- Como assim? Quis saber Bino.
E Pedro disse; - é que antes eles trabalhavam e recebiam salários, agora não trabalham e recebem sem fazer nada, até o fim do processo, ou se aposentar.
Bino riu e disse; - então a justiça não é apenas cega, ela é desonesta, burra e também injusta.
Nisso um belo jaraqui puxa com força, Pedro pega e deixa de lado. Desatento, não percebeu o jacaré por perto. Por seu tamanho e força, se aproveitou da situação e comeu o peixe. Os pescadores não tinham o que fazer.
Nesta hora, Pedro se lembrou dos servidores públicos (jacaré), que se aproveitam de seus títulos (juiz, delegado e outros), para assustar (aproveitar) a população (pescadores). Estes só podem fazer calar, frente aos abusos das autoridades, escondidas sob a carapaça (prerrogativa de função), de leis arcaicas.
Paulo Cesar