As Regras do Mercado
Histórias que se cruzam.
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A família havia acabado de almoçar e as mulheres foram lavar a louça e contar piadas, todas juntas na cozinha. De súbito ouviram gritos e alguém dando pontapés na madeira lá fora. Calaram-se de imediato. Naquele lugar a morte nem sempre avisava, mas daquela vez souberam que ela batia à porta.
O silêncio foi interrompido pelo estalado dos tiros. Rajadas sucessivas cortavam o ar espalhando pedaços de louça, fazendo buracos nas paredes de barro, e nos móveis. Um pequeno aquário se espatifou deixando cair o peixinho sobre a mesa. Entre cacos de vidro e pequenas poças de água o animalzinho se debatia num ritmo cada vez mais fraco.
Depois que a poeira sentou, alguns dos homens procuraram sobreviventes pela casa.
- E então?
- Todos mortos.
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Era a primeira viagem do soldado Calvin para fora do país. Após alguns dias numa Bagdá em escombros, foi transferido para um "bunker" em Abu Kamal onde receberia um treinamento para confrontos de rua. Só havia aceitado entrar naquela carreira para agradar o pai, seguir seus passos. A estadia no quartel era uma tortura diária que só ganhou algum sentido quando ele iniciou o contato com a população local.
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O pai da pequena Basmah Zulima assistiu a vinda das primeiras tropas durante a ocupação. A apreensão inicial com a chegada dos estrangeiros passou quando ele descobriu que o exército poderia ser uma bênção para o seu povo. Todas as semanas havia um dia para a distribuição de água, mantimentos e remédios, então ele estava sempre por lá com seus filhos, na fila dos donativos. Depois de um tempo acabou fazendo amizade com alguns rapazes. Um deles, Calvin Stuart, passou a frequentar a sua casa nas folgas mensais. Era um jovem de bom coração que sonhava integrar as fileiras da Cruz Vermelha, um dia. Nas visitas que o rapaz fazia, procurava proporcionar uma vida melhor para aquelas pessoas, então levava sacas com grãos, roupas e brinquedos para os novos amigos.
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Do outro lado da cidade o Tenente Campbell ouviu o telefone tocar. Nem precisava atender para saber quem ligava. O militar era um homem viciado em jogo. Seu salário já não dava mais para cobrir as dívidas. Para tentar saldá-las fez inúmeros empréstimos, e para pagar os empréstimos toparia fazer qualquer ajuste. Então surgiu uma oportunidade.
Normalmente ele não entraria em algum negócio sujo. Mas depois de muitas conversas no melhor piano bar da capital, ele achou a proposta irrecusável. No início a conversa girava sobre adoção informal. As crianças vítimas da guerra que tivessem ficado órfãs iriam ganhar pais e mães novos e ricos. Fazendo os cálculos, se fornecesse o transporte para umas dez delas usando o caminhão do exército, já teria dinheiro para pagar suas dívidas e ainda sobraria algum para diversão.
- Tudo o que você precisa fazer é assinar estes documentos. Pense nas crianças, James. Serão americanos! Você não acha que é muita sorte?
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Enrico Azolta era um homem de aspecto desagradável. Vivia suado e usava roupas sempre mais apertadas do que a sua compleição física exigia. Visitava periodicamente as aldeias mais pobres para comercializar crianças. A miséria permitia que ele fizesse excelentes negócios.
O dinheiro que oferecia não representava sequer dez por cento do valor que ele recebia com a venda das mesmas crianças em Miami.
Jamal Zulima já conhecia o recrutador italiano de vista. Havia visto alguns de seus vizinhos conversando com ele, vendendo para ele os próprios filhos. No dia em que Enrico bateu na sua porta, Jamal expulsou o homem de lá com empurrões. Era dia de visita com o soldado americano. Calvin perguntou o que estava acontecendo e prometeu ajudar. Enrico saiu de lá prometendo vingança.
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James Campbell escutou com interesse o relato de Calvin. Juntos escreveram cartas às autoridades, denunciando o tráfico humano. O tenente pôs as cartas em sua gaveta e antes que o soldado Calvin fosse embora, perguntou quando o rapaz iria à casa dos Zulima novamente.
James precisava de uma ideia para resolver aquele problema.
Calvin jogava baralho com Jamal depois do almoço, quando os soldados chegaram. Ouviu gritos e correu até a porta avisando que havia sido um engano, que não havia nenhum traficante ali. A primeira rajada o calou, a seguinte deu cabo das crianças maiores. Em poucos minutos todos estavam no chão, entre o barro da casa e os pedaços de suas lembranças que a ninguém importavam.
Naquela mesma noite a televisão noticiava que mais uma ação de combate ao terrorismo havia obtido êxito no Iraque. Segundo a agência de notícias, um grupo de fanáticos liderado por Jamal Zulima havia sido morto pelo exército americano após uma troca de tiros onde o Soldado Calvin S. Stuart havia sucumbido. Solidário, o Tenente James Campbell fez questão de acompanhar o corpo até a cidade onde os pais do rapaz moravam, e entregou a medalha à família durante o enterro.
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A família havia acabado de almoçar e as mulheres foram lavar a louça e contar piadas, todas juntas na cozinha. De súbito ouviram gritos e alguém dando pontapés na madeira lá fora. Calaram-se de imediato. Naquele lugar a morte nem sempre avisava, mas daquela vez souberam que ela batia à porta.
O silêncio foi interrompido pelo estalado dos tiros. Rajadas sucessivas cortavam o ar espalhando pedaços de louça, fazendo buracos nas paredes de barro, e nos móveis. Um pequeno aquário se espatifou deixando cair o peixinho sobre a mesa. Entre cacos de vidro e pequenas poças de água o animalzinho se debatia num ritmo cada vez mais fraco.
Depois que a poeira sentou, alguns dos homens procuraram sobreviventes pela casa.
- E então?
- Todos mortos.
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Era a primeira viagem do soldado Calvin para fora do país. Após alguns dias numa Bagdá em escombros, foi transferido para um "bunker" em Abu Kamal onde receberia um treinamento para confrontos de rua. Só havia aceitado entrar naquela carreira para agradar o pai, seguir seus passos. A estadia no quartel era uma tortura diária que só ganhou algum sentido quando ele iniciou o contato com a população local.
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O pai da pequena Basmah Zulima assistiu a vinda das primeiras tropas durante a ocupação. A apreensão inicial com a chegada dos estrangeiros passou quando ele descobriu que o exército poderia ser uma bênção para o seu povo. Todas as semanas havia um dia para a distribuição de água, mantimentos e remédios, então ele estava sempre por lá com seus filhos, na fila dos donativos. Depois de um tempo acabou fazendo amizade com alguns rapazes. Um deles, Calvin Stuart, passou a frequentar a sua casa nas folgas mensais. Era um jovem de bom coração que sonhava integrar as fileiras da Cruz Vermelha, um dia. Nas visitas que o rapaz fazia, procurava proporcionar uma vida melhor para aquelas pessoas, então levava sacas com grãos, roupas e brinquedos para os novos amigos.
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Do outro lado da cidade o Tenente Campbell ouviu o telefone tocar. Nem precisava atender para saber quem ligava. O militar era um homem viciado em jogo. Seu salário já não dava mais para cobrir as dívidas. Para tentar saldá-las fez inúmeros empréstimos, e para pagar os empréstimos toparia fazer qualquer ajuste. Então surgiu uma oportunidade.
Normalmente ele não entraria em algum negócio sujo. Mas depois de muitas conversas no melhor piano bar da capital, ele achou a proposta irrecusável. No início a conversa girava sobre adoção informal. As crianças vítimas da guerra que tivessem ficado órfãs iriam ganhar pais e mães novos e ricos. Fazendo os cálculos, se fornecesse o transporte para umas dez delas usando o caminhão do exército, já teria dinheiro para pagar suas dívidas e ainda sobraria algum para diversão.
- Tudo o que você precisa fazer é assinar estes documentos. Pense nas crianças, James. Serão americanos! Você não acha que é muita sorte?
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Enrico Azolta era um homem de aspecto desagradável. Vivia suado e usava roupas sempre mais apertadas do que a sua compleição física exigia. Visitava periodicamente as aldeias mais pobres para comercializar crianças. A miséria permitia que ele fizesse excelentes negócios.
O dinheiro que oferecia não representava sequer dez por cento do valor que ele recebia com a venda das mesmas crianças em Miami.
Jamal Zulima já conhecia o recrutador italiano de vista. Havia visto alguns de seus vizinhos conversando com ele, vendendo para ele os próprios filhos. No dia em que Enrico bateu na sua porta, Jamal expulsou o homem de lá com empurrões. Era dia de visita com o soldado americano. Calvin perguntou o que estava acontecendo e prometeu ajudar. Enrico saiu de lá prometendo vingança.
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James Campbell escutou com interesse o relato de Calvin. Juntos escreveram cartas às autoridades, denunciando o tráfico humano. O tenente pôs as cartas em sua gaveta e antes que o soldado Calvin fosse embora, perguntou quando o rapaz iria à casa dos Zulima novamente.
James precisava de uma ideia para resolver aquele problema.
Calvin jogava baralho com Jamal depois do almoço, quando os soldados chegaram. Ouviu gritos e correu até a porta avisando que havia sido um engano, que não havia nenhum traficante ali. A primeira rajada o calou, a seguinte deu cabo das crianças maiores. Em poucos minutos todos estavam no chão, entre o barro da casa e os pedaços de suas lembranças que a ninguém importavam.
Naquela mesma noite a televisão noticiava que mais uma ação de combate ao terrorismo havia obtido êxito no Iraque. Segundo a agência de notícias, um grupo de fanáticos liderado por Jamal Zulima havia sido morto pelo exército americano após uma troca de tiros onde o Soldado Calvin S. Stuart havia sucumbido. Solidário, o Tenente James Campbell fez questão de acompanhar o corpo até a cidade onde os pais do rapaz moravam, e entregou a medalha à família durante o enterro.