Caminho Suave
O caminho nunca fora tão suave... divertido e prazeroso sim. A escola ficava distante de minha casa, uns bons quilômetros. Atravessávamos um pasto impregnado de estrume de vaca, vacas mugindo, famintas, farejando gente.... Sem contar o medo, o pavor de encontrar o saci Pererê por ali, saltitante, assoviando, com seu cachimbo na boca e gorro vermelho, era o capeta pra nós... ou a "luzinha" que o Zé Tirolla, um colono italiano de meu avô, muito trabalhador, gente boa, mas que mentia mais que os políticos de hoje... jurava de pés juntos, ter visto, muitas vezes, à noite, e até mesmo de dia, afugentando, afrontando-as com um pau, eita cabra macho...- "eram almas penadas, assombrações que ali perambulavam" ...dizia.
Mas o pasto também trazia coisas boas: o pé de araticum, o córrego de águas frescas, as florzinhas amarelas...ai como adorávamos. Eu e minha finada irmã Rufina colhíamos um buquê para levar pra professora Herminia. Mulher de fibra. Baiana destemida. De estatura alta, esguia, rosto de bugre, nariz alongado, cabelos finos, lisos, ralos, sempre presos em um coque. Sábia. Mas, sempre com um corretivo na mão. Podia ser o próprio giz. Ou a vara . Aluno indisciplinado entrava na dança. Nem era preciso. Todos a respeitavam. Era carinhosa. Pegava o aluno no colo pra ensinar a velha cartilha "Caminho Suave". Assim nos conquistava. Havia uma menina, que morava em uma casinha lá no alto do morro, que também frequentava a mesma escola, e não saía da minha casa. Tinha voz grave, era diferente das outras meninas. Minha mãe brincava com ela e dizia que ela um dia iria se casar com meu irmão mais velho, o Wilson, ao que ela mais que depressa respondia: "homem não"... anos depois, já morando na cidade, ela nos visitou e contou para minha mãe que havia ido pra São Paulo, fazer uma cirurgia para mudar o sexo. Não era surpresa pra nós, e a acolhemos com o mesmo carinho de sempre. Não me lembro de, jamais , tê-la visto sendo discriminada pelos colegas na escola por sua condição diferente.Tempos de muito respeito e aceitação. Muita pureza. As mães não tinham medo de mandar seus filhos para escola. Era preciso enfrentar o medo, o diferente, para poder crescer, dizia minha mãe, psicologia empírica, da vida... Não havia ameaça de qualquer natureza. Nem de ideologias, nem da hipocrisia . Éramos criancas , simplesmente. Livres para aprender. O único medo de nossos pais eram as cobras, as vacas, os raios , os tombos no percurso até a escola, em dias de tempestade, nas estradas lamacentas, cheias de aclives e declives... estudei apenas alguns meses lá, na Escola Municipal Cerro Azul, na velha casinha de madeira, que deixou saudades e lindas recordações. Depois continuei com o Caminho Suave na cidade. Um novo e emocionante capítulo de minha história, conto depois.