E se respirar não for o suficiente?
Velho pra isso, velho demais praquilo. Malditos sejam esses currículos, o aluguel e aquele síndico bebum! Trinta anos de experiência? Seria melhor ter os meus vinte anos de volta.
“Respira. Você consegue. Só respira.” Hoje não é só o calor. São as buzinas, as pessoas nas faixas de pedestres "desfilando", os gritos dos motoristas e uma dor nas costas infernal. Um carro de autoescola à minha frente estanca a cada metro. Respirar não funciona tão bem. Sinto as fendas aumentando.
“Respira. Não desiste. Respira.”
Mas que droga! Outra aspirante a modelo. O tempo passa e eu não saio do lugar. Meia hora e dois quarteirões. Que avanço! Ó, querido DeLorean, onde você estará? Fazer o quê...
“Respira. Respira.” Mais buzinas. Mais barulho. E se respirar não for o suficiente? Daria qualquer coisa para ter cinco minutos de silêncio. Ah, que inveja do meu parceiro de engarrafamento. Seus vidros fumês fechados, ar condicionado e quem sabe uma música ambiente. Assim é fácil respirar. Quem dera essa minha belezura fizesse essa proeza. Pare e ligue o ar, ou dirija e cozinhe.
“Respira. Estamos quase lá. Respira.” Que milagre! Lá se vão mais dois quarteirões. Só falta mais um.
“Respira. Respira” Finalmente! Calçada. Garagem. Escadas. Apartamento. Chuveiro. Giro o registro. Cadê a água? Nenhuma gota. Nada.
“Respira. Respira.” Analgésico. Ventilador. Costas. Chão. Contagem regressiva. A barulheira começa. Eu me pergunto: Por que não um isolamento acústico? Já para a lista do próximo mês.
“Respira. Respira.” Crianças enlouquecidas no andar de cima. Um tenor de quinta de um lado, um maldito pinscher no vizinho da frente, um alcoólatra em regressão do outro lado. Sinto falta das buzinas, sinto muita falta delas.
“Respira. Respira.” A confusão aumenta. A mulher grita com as crianças. O tenor liga o chuveiro. O bêbado liga o som. Ao menos o cachorro fechou o bico. As buzinas tinham uma melodia muito melhor...
“Respira. Respira.” Uma hora depois, o músico se cansa. As crianças também. Mas ele, não. A dor não passa, o calor não melhora.
“Já chega!” Bato a porta. Ninguém atende. Viro a maçaneta. Está destrancada. Garrafas de cerveja vazias, um home theater colado a minha parede, um projeto mal acabado no meio da sala.
Respira. Respira. Pé de cabra. Garrafas. Pé de cabra. Crânio. Respira. Pé de cabra. Som. Pé de cabra. Silêncio. Redirecione seu estresse, minha terapeuta diria. E não é que deu certo! Pena ela não ter dito nada quanto a isso.