Catação

Catação

A década era de sessenta. Havíamos mudado do campo para a cidade. - " onde se viu, dizia minha mãe, as crianças precisam estudar, buscar novos horizontes na vida"... Meu pai não queria. Por ele, a gente continuava arrancando mato, limpando tronco de café, tirando leite da vaca... não que não se preocupasse conosco, com nosso futuro, - "essa vida aqui é dura, exige renúncias, mas tem lá suas vantagens", argumentava: temos ar puro, sossego, fartura, fome a gente não passa. Na cidade, prosseguia, sem estudo, sem nenhuma formação profissional, como irei sustentar as crianças?" Mesmo assim a mãe bateu o pé e viemos. Amarrados como gados para o matadouro viemos. Foi fácil trazer as traias. Não tínhamos quase nada pra carregar. A picape Ford, azul, do Sr Shideo, que morava ao lado da farmácia, cuja esposa sofria das faculdades mentais e, qdo surtava, picava em pedacinhos, com o machado, toda roupa do varal... trouxe tudo, e ainda sobrou espaço para Didi, nossa cachorrinha, viralata, sem raça nenhuma, sarnenta, como dizia minha mãe, mas companheira leal , chorou com todos , ao deixarmos o velho e inesquecível lugar: a casinha preta, de tábua de peroba, desbotada, o morão, onde ficávamos horas esperando o pai que ia buscar coisas pra nós na Vila Regina. O quintal amplo, sempre muito limpo, varrido com vassouras de guanxuma... o pomar, onde nos deliciàvamos com as pitangas, as tangerinas, as mexericas, as uvas, goiabas, guabirobas, araticuns, logo de manhã, ainda orvalhadas pelo sereno da noite, o leite quente, espirrado em nossas bocas, por meu pai, direto das tetas da Jersinha, nossa vaca leiteira, nossas brincadeiras, na tulha cheia de café, na caixa d água, nas minas, nos rios, no frio, no calor, nas noites de lua cheia, com os vagalumes, as corridas com bezouros, nossos cacos, nossos causos, nossos cantos... No início foi difícil, passávamos muita privações e saudades. Minha vó , que morava três casas acima da nossa, em ampla casa de alvenaria, com varanda, banheira, pomar e tudo, às escondidas, colocava uma nota de 20 cruzeiros velhos no bolso da minha mãe. Era uma festa. Teríamos bife no almoço! No calor, bebíamos a água quente da torneira. Minha mãe, com pena, acostumados com a água fresca do poço, das minas, pedia gelo das vizinhas, mas eu morria de vergonha ... Então resolvemos todos trabalhar. Em casa mesmo, catando café. Na época os armazéns terceirizavam esta tarefa. Ficávamos horas e horas sobre a mesa escolhendo o café. Catando os defeituosos, as pedrinhas, todas as impurezas, os grãos brocados- atacados pela broca - e, às vezes, furtivamente, catávamos sonhos cantando com nossos pais... Minha mãe contando causos: do Velho Venturão , de assombração, aparições... a tarefa cansativa, penosa, enfadonha, mal remunerada, se tornava interessante, e rendia alguns trocos, pra comprar leite, pão, a mistura. .. hoje cato lembranças que fazem a vida ainda a pena valer.

Benvinda Palma

Bemtevi
Enviado por Bemtevi em 28/01/2019
Reeditado em 28/01/2019
Código do texto: T6561262
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